quinta-feira, 21 de novembro de 2024

O bar ideal existe?

Pergunta-me a amiga Britz Lopes, de supetão, quais seriam as qualidades de um bom bar. O tema é sério e requer reflexão cuidadosa — busco, assim, os meus óculos de erudito e também alguns empoeirados alfarrábios e, assentando-me num bar que não divulgarei qual é, matuto sobre o etílico assunto (e aqui já temos uma característica de alguns bons bares: eles devem ser “nossos”, num sentido afetivo e de propriedade íntima, como se buscássemos em suas mesas a cerveja e o vinho primeiros — ou primordiais e atávicos, digamos assim).

Vamos à doutrina técnica. Vinicius? Não, não: sua paleta de assuntos era variada demais; os bares eram seu porto, sim, porém não seu tema constante. Talvez Antônio Maria, outro que se naufragava em bares e boates cariocas? Ocorre que “o bom Maria”, creio eu, foi provavelmente o nosso maior cronista da noite e, por isso, nos seus textos os bares são mais paisagem, como passos da paixão de quem não costumava ver muito a luz solar. Decido-me, portanto: vou de Paulo Mendes Campos, o filósofo brasileiro do álcool e dos lugares em que o bebemos, patrimônio nacional entronizado no panteão de nós outros que cuidamos da saúde com taninos e cevada — há dezenas, talvez centenas, de crônicas suas sobre a ziguezagueante questão, eis aí o motivo de sua imortalização no Hall of Fame dos Frege-Moscas. Recordo-me, meio no susto e ainda na primeira rodada, de “Réquiem para os bares mortos” e “Os bares morrem numa quarta-feira”.

PMC exagerava ao afirmar que o bom freguês só ama os bares que já se foram, logo ele, veterano de umas três ou quatro gerações de bares em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, todos frequentados com assiduidade nas nossas duas estações, a dos deslizamentos e a das represas secas. Vale dizer: um bar morto é memória, mas a qualidade inicial e óbvia de um bom bar é que ele esteja à mão, claro — “a economia a gente vê depois” não funciona em libações, ora, ora, pois, pois. Entretanto, o grande mineiro acertava, e com ele fecho questão, quando insistia na qualidade técnica dos frequentadores dos “seus” bares. Doutrina dita, doutrina aceita: magister dixit.

Vista a literatura especializada, vamos à jurisprudência, aos julgamentos mais ou menos coletivos que firmam um conjunto coerente de qualidades de botecos e afins. Comecemos também pelos usuários das instalações de tascas e biroscas: uma saudável mistura de amigos antigos e recentes é de regra, e eles hão de ser de variados tipos — os que estão subindo na vida e aqueles que vêm ladeira abaixo; carolas que tomam os seus tragos e tipos que não fariam feio numa lista de estelionatários; ricos degradados e pobres honrados; bons prosadores e maus poetas (ou o contrário); velhos comunistas desiludidos; estrangeiros de origem suspeita; gente de profissão duvidosa; contadores de casos magníficos; quem acaba de retornar do Casaquistão e quem está prestes a embarcar para Serra Leoa; representantes dos poderes constituídos e dos poderes desconstituídos… Ah, sobretudo, sobretudo mesmo, aquela turma que parece ter escapado de alguma clínica de repouso (vejam só: por um desses desgarrados eu fui crismado, num pé-sujíssimo em ruínas, com sal e cerveja e em latim — como não os convidar para todos os bares do mundo?). Vocês pegaram o espírito da coisa, bem sei: náufragos e nadadores olímpicos em cumplicidade etílica, sempre e sempre. Opa, eu já ia me esquecendo: não pode faltar o pessoal quem tem um vocabulário próprio, um patoá com algumas expressões regionais e outras inventadas: “com a avó atrás do toco”, “siricutico”, “atacado de galvão-buenismo”, “gelo-baldismo”…

E o ambiente? Arejado, é claro, e sem parquinho para crianças — a meninada deve ficar com as avós quando os pais forem em busca do olvido alcoólico. Tampouco nada de televisão ou de música ao vivo, pois vamos ao bar tanto para nos inebriar como para maldizer e benquerer, o que demanda ruído mínimo e iluminação meio lusco-fusco, no estilo de inferninhos dos anos 70. Vinho honesto e chope na temperatura correta são de rigueur, mesdames et messieurs, e não se precisa reforçar isso. Eis aí, imagino, alguns atributos com que cerca de 80 ou 90 por cento de bons fregueses concordariam. Características gerais, bem entendido; todos temos, contudo, as nossas idiossincrasias. Eu, por exemplo, gosto de bares distantes e com ar decadente, o típico pé-sujo (categoria que se subdivide, se é que a Tradicional Família Goiana me permite aqui certo vocabulário: um pé-sujo atrás de igreja se chama “cu de padre”; se for minúsculo e a clientela se sentar ao balcão e de costas para a rua, a taxonomia adequada deverá ser “bunda de fora”).

Bem, eu escrevi pé-sujo, não? Sim, sim. Explico-me. Com os primeiros salários que ganhei na vida, dei para frequentar restaurantes famosos e beber vinhos ditos pontuados; depois, gastei anos — aleluia! — para encontrar o caminho de Damasco da simplicidade. Tive bons mestres, reconheço; cito aqui dois que já se foram, o jornalista Isanulfo Cordeiro e o psiquiatra Celso Costa, ambos tendo me catequizado para a minha conversão do cassoulet ao torresmo, do Chablis à pinga com jambu. Pois sentencio: nada há como uma feijoada num boteco assim — com os agregados de proprietário com avental sujo e cachorro amarelo deitado à porta, confesso que vou ao êxtase. Fazer o quê? Gosto dessas bobagens, pé-sujo, farol decadente, balsa para atravessar rio, sino de igreja em Minas… Tenho até uma lista com o endereço de muitos e muitos botequins de terceira categoria e que fornecem comida, bebida e atendimento de primeiríssima ordem — só a entrego mediante pagamento antecipado e em moeda estrangeira, já aviso.

Alonguei-me, é fato. E escrevo tudo isto e me dou conta de que talvez seja muita filosofia para um simples prazer. Resumo, então: um bom bar será sempre aquele em que meus amigos Britz Lopes e Marcio Fernandes estiverem me aguardando. Cheers, kampai, salud, santé e l’chaim!

 

Foto de abertura: Bar Glória (Instagram)

Texto muito bem escrito por Marcelo Franco, o cidadão que aparece na foto abaixo:

Este post foi escrito por: Britz Lopes

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