As Cartas de Soraia (conto breve)
Renata Abalém — Na véspera do quinto agosto, agoniada, procurei a famosa Soraia.
Não era uma cartomante comum. Meus avós diziam que os seus avós consultavam-se com ela.
Também não era barata.
Já havia se tornado lenda urbana. Uma delas diz que ela sempre surge quando o Líbano está prestes a desaparecer, como um símbolo ou um talismã.
Surgia velha, mas intacta. Unhas vermelhas e mãos desenhadas com henna.
Sem idade, um mistério!
Em Hamra*, ela era ao mesmo tempo tabu e veneração.
Um primeiro andar de um prédio comercial todo tomado por tapetes e lenços. Rahbani* ao fundo.
A mulher veio e estava ali uma força da natureza como são as mães, avós e tias libanesas.
Paguei antecipadamente por sete perguntas ou sete respostas, me entendam bem. Esse era o rito.
O tarot era extensão das suas mãos. Sorria e se entristecia ao mesmo tempo. Mais levantina impossível.
“Sete perguntas. Uma só dor.”
E, uma a uma, as cartas foram sendo dispostas, nessa ordem que vou contar:
A pergunta é: poderia ter sido evitado?
A carta : O Mundo
“Quando Deus plantou as âncoras nas águas da Fenícia, Beirute era canto e comércio, era vela inflada e vinho espesso.
Deus fez nascer a cidade do suor e da palavra.
Quantos filhos haveria mais de perder a barriga que mais gerou filhos para o mundo?
O destino estava inteiro diante deles.
Cada relatório ignorado, cada aviso engavetado, cada silêncio comprado.
— Sim, poderia ter sido evitado. Mas olharam para tudo, menos para o óbvio.”
A pergunta é: A culpa foi exclusiva de funcionários públicos?
A carta: Dez de Espadas.
“A resposta perfura.
Não. A culpa sangra em múltiplas espadas.
Ah… quando um corpo jaz atravessado por dez lâminas,
não é só um punho que o derruba.
A culpa tem braços demais, passa de mão em mão, como moeda suja em mesa de jogo.
Burocratas? Sim! Mas também senhores ocultos e bocas caladas por conveniência.
Quem escreve ofícios também carrega lâminas.
Mas há outras mãos: as que assinam sem olhar, as que transportam sem saber, as que ordenam sem deixar rastro.
-Não foi só a máquina pública. Foram mãos demais para um só punhal.”
A pergunta é: Há mãos estrangeiras nessa tragédia?
A carta: Sete de Paus.
“Há.
Alguém lutou para manter a verdade enterrada sob areia de contratos e bandeiras de conveniência.
Organizações que vestem o manto do comércio, mas brandem o cetro da omissão.
Há suor estrangeiro nesse barril e um silêncio ensaiado nas chancelarias.
Ninguém viu, mas todos sabiam.
Um segredo não se constrói com palavras, mas com a ausência delas.
— Há nomes de fora que jamais sairão dos arquivos. O Líbano não sangra sozinho.”
A pergunta é: Isso será descoberto?
A carta: Rainha de Ouros.
“Sim.
A verdade virá pela mão de quem cultiva a terra dos fatos: Uma mulher.
Ou uma voz delicada.
Alguém que nutre a justiça com paciência.
A verdade virá não como explosão, mas como raiz que rompe o concreto.
Talvez não em gritos, mas em arquivos abertos, em confissões tardias.
Virá como se colhe uma romã: com dedos firmes e reverência.
– A verdade virá. Não como fúria, mas como planta que insiste.”
A pergunta é: As pessoas serão indenizadas?
A carta: Valete de Copas.
“Virão promessas doces.
Papéis com brasões. Advogados em paletós claros.
Mas prometer não é pagar.
E que cifra paga um braço perdido, um filho calado, uma retina estilhaçada?
— As vítimas ouvirão promessas. Algumas até receberão cifras. Mas o que se perdeu não tem câmbio.”
A pergunta é: o Líbano será indenizado?
A carta: Rei de Espadas.
“Sim, mas com dor.
A justiça virá de longe, fria, calculada.
Os tribunais estrangeiros que o julgaram estranho verão sua ferida.
Mas os reais culpados tentarão esconder-se atrás de espadas legais.
— O país será indenizado por tribunais distantes. Justiça sem rosto.”
A pergunta é: E o futuro do Líbano nos próximos 6 meses?
A carta: A Temperança.
O Líbano, país da alma partida, buscará equilíbrio.
Haverá encontros. Haverá remendos.
Nos próximos meses, o Líbano vai se recompor. Não inteiro. Mas em pé.”
A leitura terminou.
Soraia olhou-me como quem vê a sua própria alma e com ela conversa:
“Antes da palavra escrita, havia o Líbano.
Desta terra nasceram os navegadores, os alfabetos, os vinhos, os poemas.
O mundo se esqueceu disso, mas os céus não.
Quando o Líbano ainda não era solo, mas apenas ideia nascida do hálito divino,
os deuses se reuniram para decidir onde ficariam suas montanhas e onde os navios beijariam o mar.
Um lançou o primeiro tronco de cedro no Mediterrâneo, que virou leme, que virou lar. Os fenícios aprenderam a costurar o mundo.
Outra abençoou as mães que cozinhavam com zaatar e hortelã.
Deu a elas o som do pilão batendo carne para o quibe — Som inesquecível.
Outro deu ao povo a alegria que inveja o mundo, as gigantescas rodas de dabke e uma alegria carimbada na alma.
O Líbano é filho dos deuses, Ayne…
Não morrerá jamais.”
Sai atordoada.
Desci as pequenas escadas do prédio e sai para o sol de verão de agosto de 2025.
Se as cartas estão certas? O tempo nos dirá.
E Soraia? Pensarei sobre ela nessa Hamra que não cala nunca.
Contarei sobre ela para os meus netos, quem sabe um dia, eles poderão atestar se ela acertou nas previsões.
*Hamra – rua icônica de Beirute, cheia de cafeterias.
*Rahbani, Ziad – músico libanês amado que faleceu no final de julho.