A força das mulheres do Cerrado
Em época de empoderamento feminino, trago aqui algumas reflexões atuais sobre mulheres cerratenses que escreveram histórias memoráveis no livro da vida. Uma delas é Benedita Cipriano, conhecida como Santa Dica. Nasceu em 1903 em uma fazenda no município de Pirenópolis (GO), onde mais tarde surgiu o povoado de Lagolândia. Aos sete anos, renasceu após três dias de morte aparente, durante seu velório. O acontecido atraiu romarias de fervorosos crentes da região onde morava, que peregrinaram para pedir-lhes a bênção e conseguir graças. Mocinha, ela já liderava legiões de adoradores que a seguiam com fiel devoção, estabelecendo moradias em sua volta, formando assim um povoado.
Dica pregava igualdade social, abolição dos impostos, distribuição de terras, além de fazer curas milagrosas e até rezar missas. Suas ideias e sua forma de “governar” seu pequeno território começaram a incomodar os grandes comandantes da época como coronéis, governantes e até a igreja, pois ela chegou a reunir à sua volta cerca de 4 mil eleitores, entre eles, 1.500 homens capacitados para o combate.
Consta da história que Dica foi presa, mas logo os poderosos entenderam que seria mais adequado tê-la como aliada. Assim ela recebeu um exército de 400 homens para liderar, com o qual participou da Revolução Constitucionalista de 1932, enfrentando a Coluna Prestes, entre outros feitos memoráveis. Entre combates, curas e milagres, casou-se mais de uma vez, foi mãe de sete filhos e trilhou seu caminho permeado de aventuras, coragem e misticismo. Sua história, embora digna de ser reconhecida nacionalmente, permanece velada pela omissão dos fatos.
Foto: Luís Elias
Eterna Cora – Anna Lins dos Guimarães, ou simplesmente Cora Coralina, nasceu na Cidade de Goiás em 1889. Poetisa e contista, foi considerada uma das mais importantes escritoras do Brasil com sua obra poética rica em motivos do cotidiano do interior brasileiro, especialmente da Cidade de Goiás. Entre inúmeros prêmios, foi contemplada com o Prêmio Juca Pato da União Brasileira dos Escritores, em 1983, e postumamente, em 2006, recebeu a condecoração de Ordem do Mérito Cultural.
Aventurou-se e enfrentou a sociedade e o desconhecido por amor (e, imagino, que também por sede de conhecer outros mundos). Casou-se e constituiu família fora de Goiás, mas quando ficou viúva, voltou para sua terra natal e continuou trilhando seu caminho entre doces, livros, poemas, memórias e tardios reconhecimentos. O que essas mulheres têm em comum? Além de serem cerratenses, tiveram a coragem de acreditar no próprio poder. Cada uma com seus propósitos, acreditaram em seus sonhos e deram o seu melhor, enfrentando a sociedade e deixando um legado que tem como lema: “Sigam suas próprias regras”.
Foto: Goiás Turismo
O caminho de ambas – Na atualidade, as duas se encontram pelas trilhas que permeiam o interior de Goiás. Estou falando do Caminho de Cora Coralina. O caminho que as “uniu”. Idealizado em 2013, o projeto foi idealizado para interligar os municípios, povoados, fazendas e ser mais um atrativo numa rota turística para peregrinos e ciclistas no interior de Goiás. A trilha criada por Bismarque Villa Real passa por caminhos históricos e oferece aos viandantes vivências sensoriais que envolvem a cultura, a gastronomia e a natureza da região, além de promover o desenvolvimento regional com a geração de emprego e renda para seus habitantes.
O roteiro traçado, com 300 quilômetros, sugere aos adeptos da aventura um mergulho na natureza, conexão com as raízes culturais, contemplação das belezas do Cerrado; tudo embalado pelas poesias de Cora Coralina em 60 placas instaladas em locais de descanso. O caminho passa por dois parques estaduais e um municipal, transpõe o Divisor Continental de Águas na altura do Pico dos Pireneus e cruza mais de 50 rios e córregos. Seu traçado buscou integrar municípios e povoados existentes na região do roteiro, interagindo os caminhantes e ciclistas com a cultura local, promovendo ricas trocas socioculturais em momentos únicos.
Um projeto que traz um público que tem em comum o respeito à natureza, o senso de responsabilidade com o próximo e com o meio ambiente e a busca da própria essência. Em síntese, um turista sustentável. O caminho leva o nome de nossa renomada poetisa e se embrenha sertão adentro, passando pelo município de Santa Dica, entre outros, e por lugares que com certeza Cora não andou fisicamente, mas os “retratou” com maestria em seus doces e amargos, belos e fortes versos. Apoiados pelo poder público federal, estadual, municipal e pela sociedade local, exemplos assim poderiam se repetir com outros personagens cerratenses, valorizando nossas raízes culturais e escrevendo nossa história no livro da vida.
Foto: Santa Dica / acervo pessoal