O Ivo traiu quem?
“I’ve tried do reach you all day long with no success to discuss important issues. Let’s have a working lunch tomorrow at noon. Don’t miss it!”. Ou algo por aí, mais ou menos assim, faz tanto tempo, foi em meados dos anos 80. Este foi o memorando interno que o novo Gerente Geral da McCann-SP, Raymond Krivicky, um americano de ascendência ucraniana, enviou para o Erazê Martinho, redator do Grupo Chevrolet.
Foi com cópia pra meio mundo na agência, inclusive pra mim, Diretor de Criação e chefe do Erazê. Entendi o recado: o novo Gerente Geral estava puto com o Erazê, que não falava uma palavra em Inglês, se bem que eu sabia que o Erazê falava Inglês sim, mas se negava. O Erazê trabalhava em propaganda pra sustentar a família e a boemia, em Jundiaí, cidade na qual foi um dos fundadores do PT, de onde vinha trabalhar e pra onde voltava, de ônibus, todo fim do expediente. Nada mais justo não querer falar inglês.
O Erazê era uns 10 anos mais velho e experiente na vida do que eu. Mais sábio. Amigo de carne e unha do célebre Carlito Maia, ambos intelectuais revolucionários, criativos, inovadores e provocadores. O ruim da reação irada do novo Gerente Geral contra meu pupilo e ao mesmo tempo mentor, era que eu estava prestes a promover o Erazê a Diretor de Criação do Grupo GM e, pra isso, precisava do apoio do novo Gerente Geral. Epa! Alguém aí falou que não sabe o que é memorando interno? Era o e-mail de antigamente. Ou o Whatsapp.
A gente datilografava numa máquina de escrever, colocando folhas de carbono pra gerar cópias pra todos os destinatários. Ou ditávamos o texto, que a secretária datilografava com as cópias em carbono. Duas vezes por dia, de manhã e à tarde, um office-boy (quantos de nós, naquela geração, não começamos assim em agência?) pegava os documentos na nossa caixa de saída e colocava os documentos de entrada em outras caixinhas das outras mesas. Esse era o real-time da época.
Passaram-se dois explicáveis dias e o Erazê respondeu em Português ao Gerente Geral, copiando todo mundo, mais ou menos assim: “Você sabe que não falo bem inglês, mas insiste em me mandar esses memorandos na sua língua. Vamos então confirmar se entendi. Acho que você quis dizer: “O Ivo traiu os ricos e foi um longo dia no sucesso de discutir papéis-toalha importantes. Vamos ter um almoço trabalhoso amanhã, porque você virá como uma freira. A Miss não virá!” É isso? Se for, já dancei, o tal almoço trabalhoso foi ontem. A Miss não veio mesmo?”
Dali pra frente, o Gerente Geral passou a ditar os memorandos em inglês e sua secretária passava para o português, antes de enviar. E o Erazê ganhou ainda mais moral e respeito na agência. Logo em seguida, consegui promover o Erazê a Diretor de Criação do Grupo GM, com o apoio do novo Gerente Geral. Aí veio outra encrenca: o cartão de visitas em inglês, afinal o cliente era a General Motors, americano, global. O Erazê não queria ter um cartão de visitas, muito menos em inglês. Mas acabou aceitando, se bem que eu tenho certeza de que ele escondia o cartão de todo mundo, principalmente dos amigos do PT e de Jundiaí.
Então o Erazê enviou um memorando para a Gráfica da McCann (sim, naquela época as agências grandes tinham uma gráfica interna), copiando o Depto. de Tráfego, o Gerente Geral e eu mesmo. O texto do cartão: “Erazê Martinho, Chief Creative Director, GM Group, McCann-Erickson Brazil”. Fechando o memorando interno para a Gráfica, o Erazê dizia: “Noblesse Oblige”. Mais uma educada delicadeza irônica do Erazê. Algo como Ossos do Ofício (carregar aquele cartão).
E foi assim que se imprimiram toneladas de cartões para o Erazê: Erazê Martinho, Chief Creative Director, GM Group McCann-Erickson Brazil – Noblesse Obrige” Saudades de você, Erazê, meu redator, meu inspirador e mentor. Em muitos momentos e situações, meu chefe. Mas sempre meu parceiro de ótimas cachaças e papos melhores ainda.