quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Uma carta com saudade

 

Luiz Gravatá — Rio, 16 de agosto de 2023. Caro Mestre Millôr. Eu me lembro muito bem daquele 27 de março. Não eram nem 7 horas da manhã quando o telefone tocou. Era Ivan quem me dava a triste notícia: às nove da noite passada, me dizia seu filho, você deixava a vida. Em poucos minutos eu já estava na Vieira Souto para, com ele, darmos a notícia à Paolinha, sua filha que ainda dormia. A partir daquele momento, sentado no sofá de sua casa, comecei a me lembrar dos mais de 30 anos de amizade fraternal que tivemos. Depois de 11 anos de sua partida, quando você faria hoje 100 anos, ainda continuo a me lembrar dos seus ensinamentos, das inconfidências, de sua baita experiência de vida, dos seus amores e decepções, dos incríveis momentos históricos que passou em vida. Sobre tudo isso falávamos quase todos os dias ao telefone. Hoje tenho a certeza de uma coisa: eu era o único de seus amigos que se punha de pé ao amanhecer e você o que madrugava no atelier muito cedo. Daí o privilégio de conversar com você com tanta frequência e de me lembrar, agora, de uma coisa e outra que você me contou durante esses anos.

 

Que extensa produção intelectual em sua em vida, hein Millôr? Escritor, tradutor, poeta, humorista, compositor, filósofo, artista plástico, jornalista, roteirista de cinema e muito mais. E tem gente que pode não acreditar, mas até ator você foi. Você atuou com Oscarito em 1965 no filme Crônica da Cidade Amada, de Carlos Hugo Christensen. Numa pontinha, eu sei. Por isso você levou um susto quando ouviu no rádio um crítico de cinema dizendo entusiasmado: “mas a grande surpresa é a intepretação de Millôr Fernandes!”. A cena durou apenas 30 segundos…

 

 

Mas extensa mesmo foi sua obra no teatro e no cinema. Como autor, tradutor, adaptador e roteirista contei aqui mais de 140 peças, desde clássicos de Shakespeare, Molière, Sófocles e Aristófanes aos contemporâneos Beckett, Jean Anouilh, Fassbinder e Furio Bordon. Os roteiros para vão de filmes de Jom Tob Azulay aos de Walther Salles.

 

De suas peças, uma vez lhe perguntei qual a sua predileta. Você me respondeu de pronto: Flávia, cabeça, tronco e membros. Escrita há 60 anos, já naquela época você apresentava uma mulher emancipada e liberada, figura tão comum nos dias de hoje. A que mais lhe deu trabalho, eu mesmo lhe digo, foi A Celestina, peça de Fernando de Rojas publicada em 1499. Enquanto você traduziu o Tio Vânia de Tchekhov em 15 dias, a de Rojas você levou 3 meses. Como você não queria traduzi-la e depois de tanta insistência de Tereza Raquel, lhe pediu um preço absurdo para que não aceitasse a encomenda: cinco vezes o preço normalmente cobrado para um trabalho semelhante. Ela topou. Quase todos os dias você se lamentava, não queria traduzir, não deveria ter aceito…  E o sofrimento durou nos próximos três meses quando veio a tragédia! Depois de pronta a tradução, você fez uma trapalhada qualquer no computador e zás! Apagou o arquivo e simplesmente dele não tinha cópia. Nunca o vi tão desesperado! Deixei passar algum tempo e lhe perguntei: “o que você me dá se eu recuperar o arquivo? “O que você quiser”, me respondeu azoinado. Eu tinha um backup, coisa que eu fazia periodicamente de seus arquivos. Resultado: ganhei um baita jantar no Satyricon e nunca o vi tão feliz. Provavelmente devido às suas pragas, Tereza Raquel nunca levou a peça ao palco.

 

Ao contrário dessa alegria, o dia que o vi mais triste foi na morte de seu amigo Igor. Era pequeno e abusado esse seu grande companheiro. De madrugada, ele percebia sua chegada no andar térreo e lhe recebia com fremir de alegria. Não lhe pedia nada, somente um carinho, um simples cafuné. Aos domingos nós três andávamos na Vieira Souto. Igor não podia ver um cão que, impetuoso, partia pra cima. Você se lembra daquele imenso cão dinamarquês ao olhar, incrédulo, aquela minúscula figura que latia e o atacava? Você respondeu ao dono: “não ligue não, Igor é um policial disfarçado”. Quando ele morreu, logo cedo você me ligou. Foi então que me confessou que nunca pensou que fosse sofrer tanto com a perda de alguém.

Nunca tinha visto você chorar, Millôr

 

 


Millôr e o amigo Igor. Foto: Luiz Gravatá

 

Mas vamos deixar tristezas de lado. Muitas saudades daquela viagem que fizemos a Paris em 1998. Programamos assistir a Copa do Mundo e festejar o aniversário de nossa amiga Monique Duvernoy, esposa do embaixador do Brasil na Unesco, Fernando Pedreira. O casal insistia que nos hospedássemos em sua residência. Você lhe dizia que ficaríamos muito mais à vontade em um hotel. Ali, ponderava, a gente podia esfregar a toalha de rosto para limpar o sapato. Monique insistiu tanto que lhe convenceu e nos instalou no chic apartamento da Avenida Foch, com o detalhe: em cada quarto encontramos uma pilha de toalhas de rosto para esfregarmos nossos sapatos. Nos dias seguintes passamos a correr Paris de metrô e ônibus. Além do ineditismo para você, se divertia mais ainda com meu francês macarrônico. Espalhava que perguntei a um gendarme onde ficava o Marmotan e a resposta do guarda, atarantado, foi dada em inglês. Mentira deslavada. Mas a vingança logo veio depois. Seu amigo Carlos Freire, fotógrafo radicado em Paris desde 1968, nos levou à sua exposição no Petit Palais em um Mazda. Como a partida do auto só era permitida com o cinto de segurança conectado, você teve que se submeter ao uso do petrecho que, durante anos, condenou a obrigatoriedade do uso. Como viu que eu ia tirar a foto, se enrolou todo e não conseguiu se livrar do cinto. É claro que você ficou puto e fez esse gesto obsceno. Rimos a valer.

 


Millôr no Mazda. Foto: Luiz Gravatá

 

Outra viagem divertida foi a que fizemos nos anos 1980 para Porto Alegre. Numa recepção na casa dos Veríssimo, os reunidos sob o seu comando faziam traduções esdrúxulas do português para o inglês: “não estou nem aí” (“I´m not even there”), “chover no molhado” (“to rain on the wet”), “um dedo de prosa” (“one finger of pride”).  Às gargalhadas, o número de traduções foi crescendo tanto que virou o best-seller, The cow went to the swamp – a vaca foi pro brejo (Ed.Record, 1988). Gerado em terras gaúchas, o maior número de contribuições ao livro foi de uma pelotense: Mafalda Veríssimo.

 

É isso, Mestre. Na festa dos seus 100 anos por aí, certamente nossos amigos dos almoços de sábado: Lewgoy, Tônia, Paulo Casé, João Ubaldo, Fernando Pedreira, Teresa Graupner, Jaime Lerner, Marilia Kranz, Sergio Rodrigues e Zé Aparecido vão estar presentes e vão representar os seus amigos e admiradores que por aqui permanecem por enquanto.

Um grande abraço de seu velho amigo ex-corde,

Luiz Gravatá

Luiz Gravatá é geólogo e jornalista.

 

Este post foi escrito por: Luiz Gravatá

As opiniões emitidas nos textos dos colaboradores não refletem necessariamente, a opinião da revista eletrônica.

6 comentários em "Uma carta com saudade"

  • Marcio Fernandes disse:

    Meus Deus! Que texto lindo querido Gravatá! Muito obrigado por ter me apresentado ao Millôr, que me recomendou cuidar do sobrenome comum.

  • Maria Leda17063@gmail.com disse:

    Vc foi agraciado por dois heróis inteletual imagina essa oportunidade não é para qualquer pessoa grande jornalista grande em tudo fera parabéns maravilhoso texto lembranças inesquecível parabéns fabuloso excelente memória parabéns!! Dr Márcio Fernandes 🤗🤗🤗🤗🤗

  • Vera Vieira. disse:

    Lindo texto amigo!! Memórias!! Como sempre lembra detalhes!!

  • Almir Ghiaroni disse:

    Querido Gravatá,
    Que texto espetacular!
    Suas palavras me fizeram recordar os almoços na casa do Bianco.
    Grande abraço

  • Denise Gravatá disse:

    Que maravilha de lembrançaS (proposital), de uma amizade incrível. Lindo texto, primo. Parabéns!!!!!

  • Lucia disse:

    Oi meu amigo Gravata, lembranças inesquecível do nosso mestre Millôr!

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