quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Uma vez perdido no Marrocos, nunca pise no rabo do gato

Marcio Fernandes – Há duas coisas fundamentais que o Brasil tem em comum com o Marrocos, ainda que os dois países possuam um Oceano Atlântico de diferenças culturais. A primeira é a miscigenação racial. A segunda é o complexo de vira-lata decorrrente da herança colonial.

 

A primeira tem enorme importância por ser a miscigenação em escala de dezenas de milhões a grande contribuição civilizatória do Brasil. A segunda, em sentido contrário, comprova que os efeitos da submissão colonial são perenes à medida em que a condição de terceiro-mundo não permite a emancipação social do colonizado.

 

Ontem nós chegamos a Fez de trem em longa viagem confortável de quase cinco horas desde Casablanca. Em nossa cabine, levamos altos papos com Hassam El Mansouri, alto funcionário do governo do Marrocos, que perguntou mais do respondeu enquanto comíamos tâmaras e nozes. Ao lado, Tmr Alsheek, um saudita gordinho gente fina, que falava de sorvete o tempo todo e disse ter paixão por Maria, mãe de Jesus, em inglês meio enrolado. Achei que fosse amarra-cachorro do Hassan, mas ele desceu uma estação antes da nossa e ficou a dúvida eterna.

 

A chegada a Fez foi a roubada da roubada. Eu estava carregando a minha mochila e da Britz. Devido à providência de dois malandros consecutivos, tivemos de rodar por 2h30 perdidos no interior da medina para encontrar hospedagem. O sol era de matar naquele labirinto de ruelas que nem o GPS consegue decifrar. Para piorar as coisas, entramos em área proibida para não muçulmanos. Um cara ficou muito puto comigo e falou todos os desaforos da África Ocidental em meus ouvidos.

 

 

O problema maior não foi tanto pela profanação dos valores do Corão, mas por eu ter pisado inadvertidamente no rabo de um gato e não ter pedido desculpa ao bichano. Depois, descobri que para os marroquinos os gatos são cultuados por trazerem sorte. Azar o meu por não ter lido o livro dos profetas de Alá e ter antipatia de gato. Pelo menos, estamos de acordo por tanto eu quanto a maioria dos muçulmanos não gostarmos de cachorro.

 

 

Comigo não rola esta conversa de ressaca moral. No outro dia, saí do riad com meu kaffieh no pescoço certo de que impressionaria o pessoal da medina pelo estilo Yasser Arafat em conversação de paz. Não vou dizer que fui completamente ingorado, pois um comerciante perguntou se eu era japonês. Esta coisa de adivinhar tua nacionalidade é estratégia da primeira abordagem de desocupados na medina para praticar a volta clássica do guia gratuito. Como o marroquino domina, além do árabe e do berbere, o francês, o inglês e o espanhol, é fácil para os caras levarem o turista na conversa mole.

 

Em 100% dos casos, o malandro te oferece para indicar o melhor caminho até o destino desejado, no entanto te faz andar até a exaustão, momento em que, pra se livrar do cara, você morre em alguns euros. Diferente da Turquia, onde ciladas semelhantes não começam por menos de 50 euros, no Marrocos a humildade do pessoal é tanta que eles são adeptos dos pequenos golpes. Este tipo de roubada tem o custo de dois a cinco euros.

 

 

De acordo com dados do Banco Mundial, a taxa de trabalho informal no Marrocos é de 77%. Isto é plenamente observável nas ruas das medinas. Os que possuem emprego formal amargam jornadas diárias de 12 horas ou mais, a exemplo dos garçons dos riades. Por outro lado, o nível de escolaridade do Marrocos é de dar inveja à incompetente educação pública do Brasil. Aqui o ensino público é obrigatório dos cinco aos 15 anos e o índice de analfabetismo possui padrão europeu nesta faixa etária.

 

Em sentido contrário, o sistema de transporte público urbano é extremamente precário com ônibus aos pedaços e ninguém reclama, pois há uma silenciosa obdiência à monarquia e evidente culto à personalidade do rei Moamé VI. A opulência do Palácio Real em Fez é alguma coisa impressionante, especialmente pelas muralhas de 15 metros de altura que separam a nobreza dos pobres plebeus. Como no Brasil, a elite marroquina é arrogante e se acha a dona da cocada preta em carrões importados.

 

Nas 9.400 ruas da medina de Fez, normalmente em uma casa se aglomeram cinco famílias e cada uma possui um gato. Todos os bairros da medina têm sua escola e mesquita. Há um forno público para assar o pão ao custo de 10 centavos de euro. Os cafés tradicionais, reservados aos homens, ficam o dia todo lotados do pessoal fumando e bebendo café e chá de menta sem o menor movimento de atividade laboral. Não é fácil encontrar uma lata de lixo nas ruas, mas o ambiente urbano de Fez é limpinho se comparado com Marrakesh.

 

Cidade imperial fundada em 791 pelo Mulá Idris, descendente direto de Maomé, Fez é linda, monumental e possui a maior medina do mundo árabe. Consagrada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, certamente merece três dias para ser descoberta a pé. As pessoas são super gentis e a medina é exclusiva para pedestres. No souk, chama a atenção o delicioso aroma que vem das bancas de azeitonas, enquanto que pela manhã é frenético o comércio de frutas, verduras e especiarias com os comerciantes sentados no chão.

 

Não existe no planeta uma limonada com hortelã como a de birosca na entrada da medina. Caso você se perca por lá, a referência é a exuberante Porta Azul. Só não pode pisar no rabo de um gato, do contrário vai ouvir merecidamente poucas e boas.

 

Fotografias e texto Marcio Fernandes

Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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