quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Barcelona é ainda mais encantada na Vila de Gràcia

 

Marcio Fernandes – Quando decidi andar pelas ruas de Gràcia, em Barcelona, sabia que o bairro era uma cidade independente da Capital da Catalunha até o final do século 19. Sabia também das ruas estreitas, dos edifícios em estilo Art Nouveau, do caráter artístico e boêmio do lugar. Também tinha conhecimento de que o pessoal do self gratiluz desconhecia os encantos e passava longe deste espaço urbano pleno de cafés literários. O que vim a descobrir ontem foi que iria me apaixonar perdidamente pela Gràcia e deixaria a cidade com o coração partido, morrendo de chorar por dentro.

 

 

O bairro é alguma coisa linda como uma senhora ruiva de tranças que me perguntou na espera da faixa de pedestre se eu já havia sentido um ar tão perfumado como o que vinha da Padaria Santo Honorato. Fiquei meio sem ter o que dizer, com vergonha de não falar catalão, mas não me fiz de rogado. Disse que naquela tarde havia encontrado a sombra mais generosa que o fim do sol poente podia me dar.

 

 

E segui observando a arte popular de rua que por lá é toda exibida, como o nariz vermelhinho da Nina quando ela dá uma gargalhada por acreditar que eu sou mágico e crio estrelas douradas encontradas nas calçadas. Ela também se encanta com o vovô a pedir as honras ao respeitável público antes de fazer jorrar, do nada, água boa de beber de fontes que estão há séculos por lá e assim molhar os óculos, rosto e cabelo. Vou guardar segredo que ali havia chuva de lágrimas escondida para quando eu morrer de saudade dos nossos intensos dias pela Europa.

 

Gràcia da costureira abrigada do frio das ruas. Compenetrada na tarefa rara de coser com linha e agulha. Gràcia do carpinteiro calculista a imaginar entalhes antes de correr o formão na madeira macia. Gràcia dos cafés cheios de bolo de chocolate que sempre me socorrem quando estou super carente de açúcar. Graças a ti eu encontrei por acaso uma adega que se chama alma, mas nem entrei na loja de vinhos para não me encontrar com minha avó amada por não acreditar em coincidência.

 

 

Nas ruas do bairro, um senhor todo solene de gravata borboleta olha profundamente para o espaço vazio do tempo e alimenta o cachimbo certamente pensando como era ainda mais lindo o céu azul de tantos passados gostosos. Como já estou também na última parte da vida, cruzo a rua para apreciar vitrine de xadrez em madeira e penso que não tenho mesmo mais tempo a perder. Depois dou uma espiada boa em banca de jornal, onde ainda se vende jornal e não capas de celular, toda decorada como se fosse um sítio arqueológico de arte rupestre pós-moderna.

 

Ao me sentar no banco da Praça de la Vila de Gràcia, onde há torre octogonal de 33 metros e lindo campanário datado de 1824, observo a segurança da cidade no ato de crianças livremente a brincar de pique. Elas haviam saído da escola e deixaram sobre o chão suas mochilas sem a menor noção do que seja roubo ou qualquer tipo de moléstia que violenta as pessoas no Brasil.

 

 

A caminhada segue plena de curiosidade até que não resisto a certo suco de naranja, pastanaga, poma, api e glingebre (laranja, cenoura, maçã, aipo e gengibre), combinação inimaginável até para mim que misturo melancia, caju e hortelã para desespero da Britz.

 

 

Perto dali há uma rua toda bucólica que se chama Fraternidade e outra que homenageia Francisco de Goya. Não sei o que deu em mim ao parar para fotografar uma placa de madeira onde estava escrito: “I love you to the moon and back”, alguma coisa como “Te amo mais do que tudo ou ilimitadamente”. Pena não estar morrendo de fome, do contrário teria dado uma forrada boa em restaurante tibetano. Mesmo assim, imaginei que o proprietário do lugar era um cara cheio de fortuna só por ter conseguido escapar da ditadura comuno-capitalista da China. Não gosto, por questão de origem e por não ver vantagem no cativeiro, de nenhum tipo de ditadura.

 

 

Minha passada pela Gràcia terminou no Mercat de l’Abaceria. As bancas atendiam à tardinha os últimos clientes e havia um aroma de olivais de milhares de anos marinados em especiarias trazidas pelos navegadores que sucederam Cristóvão Colombo. Eu já ia embora quando a Patsy Cline me parou em frente à banca de frutas e indagou com certa ponta de decepção: “Você não vai embora antes de eu terminar Crazy, canção que gravei para você ouvir no final do passeio pela encantadora Vila de Gràcia! Quando terminar, aproveita a viagem e dê uma passada numa imobiliária qualquer. Quem sabe você não vem morar aqui.”

 

Texto e fotografias Marcio Fernandes

 

Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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