Os musgos do infinito particular
Marcio Fernandes – Tem dia que um pouco de tudo acontece no Bosque dos Buritis, onde treino praticamente toda tarde. É o mesmo lugar que nunca é o mesmo porque aparece alguém que anda por lá com a liberdade completa de expressar o lado doido da vida. Ontem, nas cercanias do vendedor de garapa chamado Teresvaldo, tinha um camarada com voz potente e afinada enchendo o parque de melodia evangélica. Eu descolei um pedaço da letra sofrida: “Vou deixar na cruz tudo o que passou.” O lado positivo da coisa foi que o cantor não parou para fazer aquele trabalho messiânico de te convidar para ir ao culto de algum pastor malandro.
No dia anterior, reparei um vendedor de balas que trazia a bandeja na cabeça em equilíbrio. O interessante foi a habilidade do cara de oferecer a mercadoria com a curvatura da coluna vertebral tão elegante que imaginei que ele fosse apresentador do novo circo Orlando Orfei que nunca existiu. Acho que fui a todos os circos que passaram por Goiânia quando era criança. Nunca entendi o sentido do globo da morte, mesmo sabendo um pouco de física de segundo grau.
O vendedor de balas seguiu como se estivesse a carregar bandeja de feijoada para quatro bocas e um chope. Uai, na hora comentei com Dália Wong, 82 anos, que certamente seria um garçom competente e desempregado por ser um criador de casos. Ela parou o passo, deu observada boa e concordou com aquele português muito enrolado de chinesa linda que anda toda segunda, quarta e sexta. Na terça e quinta ela faz pilates.
Dália nasceu em Hong Kong e virou minha companheira de uma volta no lago da antiga Assembléia Legislativa pela deliciosa coversa que fala inglês. Ela é a mais nova amiga octogenária. Tenho uma corriola expressiva nesta faixa etária e acho o máximo. Ela veio para Goiânia em 1971 com amiga que iria se casar. Acabou que também se casou depois de ter sido recusada por ilustre patrício que morava em Boston e foi a Hong Kong só para conhecê-la em contrato de casamento quando ela tinha 14 anos. Cheia de personalidade, conta que nunca teria se casado com o tal fidalgo. Luterana e cristã de terceira geração, Dália é só simpatia até ficar muito brava ao comentar a falta de educação de quem atira lixo no parque. Fiquei preocupado com a situação da saracura sete potes. Ela é muito enxerida e vai comer plástico com sabor de batata frita.
Ontem, Dália me indagou quem era a moça que estava comigo. Eu disse que o nome dela é Nancy Ortêncio. Expliquei quem ela era e logo fui surpreendido com a coincidência: ela mora no Edifício Bariani Ortêncio. O escritor se foi após um século de existência vertical na intimidade de Goiás.
Uma vida foi salva por volta das 18 horas. Na passarela do lago eu estava em falatório interminável e cheio falhas conclusivas com Dona Nancy quando por muito pouco não piso em um bebê de tartaruga. A teimosa criança de mãe negligente foi tomar sol em local indevido depois que aquela imensa várzea foi pasteurizada e virou um lago artificial. Fiquei em dúvida se a devolveria à água, já que a achei muito miudinha para nadar, mas fiz o serviço. Na minha opinião, sapo de fora não canta na lagoa. Não é que um chefe de família, com a senhora e dois cachorros, um super vira-lata, respondeu sem ser perguntado que o bebê seria comido por um peixe? Fiquei com muita antipatia da conversa inconveniente.
É uma coisa bem da cultura caipira goiana a exposição de frases nos automóveis. Geralmente no vidro traseiro. Eu fazia o anel externo do bosque quando me encontrei com uma linda Kombi branca em perfeito estado de conservação. Cismei que o dono devia ter um orgulho danado da coroa bonita. Tanto que ele fixou bem na testa da Kombi uma frase para anular vibração seca-pimenteira: “A inveja não é de Deus.” Super profundo e vou sugerir para minha vizinha em Pirenópolis que publicou frases contra a minha pessoa por mais de um década.
A estação das chuvas coincide com o verão e refresca os dias de calor insuportável que remonta alguns milhares de anos anteriores ao aquecimento global de ontem de manhã. Goiânia sempre foi muito quente e hoje está pior do que 40 anos atrás porque há menos cobertura vegetal na cidade e não circula o ar por conta do paliteiro irresponsável de edifícios ridículos. No Setor Oeste é tanto prédio gigante que a Praça do Sol virou a praia de Balneário Camboriú. Vamos chamá-la de Praça da Sombra e aceitar a vigarice dos empreendedores green. Eu prefiro encontrar a pouca variedade de vegetação que me atrai nos musgos que ficam ainda mais vivos no período das águas no Bosque dos Buritis. Musgo é uma planta que tem cara de guardar segredo. Neles moram alguma coisa do meu infinito particular, como canta a Marisa Monte.