sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Uma senhora chamada Felicidad e a Associação das Vítimas de Denúncias Falsas


Marcio Fernandes – Eu deixei Sucre em direção a Potosi com aquela sensação de conquista por ter conhecido uma cidade absolutamente linda e singular. O centro histórico, à primeira vista, reproduz o estilo dos pueblos blancos das terras mais quentes do Sul da Espanha. É um exemplo extraordinário de arquitetura vernacular do Novo Mundo consagrada Patrimônio da Humanidade.

 

Uns 15 quilômetros depois de deixar a cidade houve parada obrigatória do motorista do carro para que fosse realizada uma típica providência administrativa desnecessária do Estado. Eu não entendo porque essas coisas acontecem. Apesar de eu e Flávia de Morais, amiga de longa data e companheira de mochila, termos sido registrados na imigração ao entrar no país, na estrada fizemos outro registro em um talão com papel carbono no qual você escreve teu nome e número passaporte. E aí?

 

 

E aí que não serve para nada o papel entregue à autoridade, mas veio à janela do carro uma senhora e me ofereceu pão. Eu disse que não queria e perguntei como ela se chamava. Felicidad, disse a senhora que vende pão vindo do trigo nascido nas escassas terras planas do Altiplano Andino. Dona Felicidad foi a única “chola” que me autorizou a fotografá-la e ainda me perguntou quando eu voltaria por lá. Como não sabia dizer, enquanto o carro arrancava, eu falei rapidamente que iria escrever algo sobre o nosso feliz encontro. 

 

 

A estrada sinuosa corta um vale escarpado onde se lê a idade da terra nas cores das camadas geológicas dispostas na diagonal da rocha. São 155 quilômetros por um ambiente hostil que parece um deserto coberto de montanha. São imensos corpos rochosos, áridos por natureza, de vegetação rasteira e áspera, onde predomina o algarrobo, uma árvore de caule fino e tortuoso entre cactos solitários.

 

A viagem cobre uma geografia interessante. Deixamos Sucre aos 2,7 mil metros de altitude e descemos 500 metros até o cruzar o leito seco do Rio Retiro. Em seguida, se inicia a subida para alcançar a cota dos 4 mil metros e chegar à cidade mais alta do planeta. Ao longo da viagem vimos um burrico teimoso na faixa de rodagem da estrada, rebanho de cabras que aqui tem nome de tigo, e uma venda desolada que anunciava ter caldo de galinha. A desfaçatez governamental é rigorosamente universal. Em um posto de pedágio há publicidade estatal que conforta o pagador de impostos com o anúncio de que “A aduana trabalha por ti”.

 

 

No caminho, a estrada passa por uns poucos povoados, varridos de poeira, de casas feitas antigamente de adobe e telhados baixos. Até as ruínas são lindas. Algumas delas se diferenciam pelo colorido intenso do vermelho ao sol do meio-dia. Em Villa Carmen houve cena interessante de homens e mulheres a dividir o trabalho pesado de carregar caminhão com fardos de batata e trigo.

 

Nestes pequenos arranjos urbanos sopra um vento meio desolado que agora só piora por carregar um pouco da minha tristeza estrutural para a superfície dos Andes. Sempre que isso acontece, eu ouço na radiola que trago no coração Itamarandiba, na voz do Milton Nascimento.

 

 

As terras altas da Bolívia só têm a aparência de infertilidade imensa. Ao contrário, por aqui tudo que se planta cresce e floresce na possibilidade do ambiente. Tem cacau, tem campos de trigo, tem roçado de milho e muitas hortas em terras planas escondidas nas montanhas. Certamente vem de lá a riqueza de frutos, folhas e flores que enchem de sabor, aroma e viço o Mercado Central de Sucre, o mais belo do planeta. 

 

A Bolívia tem uma importância histórica pouco reconhecida nas três Américas. Foi o primeiro país no subcontinente latinoamericano a se insurgir contra a coroa espanhola em movimento por independência. Depois, o primeiro presidente da Argentina era um boliviano nascido no ambiente hostil do altiplano andino e portador de orelhas acabanadas de rato saruê chamado Cornelio Saavedra.

 

 

A verdadeira importância histórica da Bolívia reside na capacidade política de realizar golpes de Estado. Já foram 36 desde a instauração da República em 1825. Aqui não tem essa conversa de minuta de golpe supervisionada por general calça-curta. É só o pessoal cismar que o presidente perde o assento.

 

Se não tivesse de descolar a estrada em direção a Salar de Uyuni, eu teria feito uma queixa na  Asssociação das Vítimas de Denúncias Falsas. O Uber teve a pachorra de me enviar mensagem com a narrativa de que estava com saudade de mim. Veja só descaramento do aplicativo no uso da inteligência artificial! Está mesmo com saudade de mim? Então venha de carro para a Bolívia.

 

Marcio Fernandes é jornalista 

 

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Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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2 comentários em "Uma senhora chamada Felicidad e a Associação das Vítimas de Denúncias Falsas"

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