Demitido, readmitido, promovido. Qu’est-ce que c’est?!
Comecei minha vida profissional com 9 anos de idade, sem querer e por conveniências e interesses múltiplos: fui cuidador de uma velhinha francesa de 90 anos, Madame Garry.
Éramos vizinhos de rua, na Lapa. O filho dela era solteiro, transferido pela Saint-Gobain francesa pro Brasil, que havia comprado a Vidraria Santa Marina. Pra garantir a carreira internacional, ele teve de trazer a mãe velhinha a tiracolo.
Pelas felizes coincidências que a vida trama, minha mãe era secretária da diretoria dessa empresa e morávamos perto. Foi assim que virei baby-sitter da Madame Garry. E ela, de mim.
Madame Garry era um amor de pessoa, se vestida de preto da cabeça aos pés, meias grossas de lã, sapatões austeros e fechados em pleno país tropical. Vivia numa casa atulhada de mobiliário francês do século passado.
Ela não falava uma palavra de português, eu nem sabia que existia a França.
Nos entendemos com carinho em silêncio e mímica por alguns meses, todas as tardes de segundas, quartas e sextas-feiras. Eu cuidando dela, ela cuidando de mim. Isso durou uns 4 anos.
Um dia Madame Garry, que era professora aposentada do ensino fundamental na França, mandou vir uns livros didáticos e passou a me ensinar Francês formalmente. Eu comecei a aprender Francês, de verdade.
Em contrapartida, usei meus livros escolares pra ensinar português pra Madame Garry. Ela foi uma aluna esforçada e eu, um péssimo professor como um recém-analfabeto no meu próprio idioma.
Madame Garry assinava várias publicações francesas, que recebia pelo correio com meses de atraso (era o real-time daquela época). Eu devorava tudo.
Graças ao prestígio e influência de Madame Garry junto ao cônsul francês, prestei o bacalaureat, uma espécie de vestibular de lá.
Como um treineiro do Fuvest de hoje, fiz o exame oficial à distância na Aliança Francesa aqui de São Paulo, devidamente validado pelo Consulado Francês.
Fui aprovado e admitido em Filosofia e Letras em alguma faculdade na França.
Claro que deixei pra lá, porque minha família não tinha grana e eu não tinha idade. Ninguém com 13 anos cursaria uma universidade na França.
O fato é que o francês passou a ser como uma língua nativa pra mim. Com um forte sotaque do norte, de Pas-de-Calais, mas era um francês impecável.
Cada vez que vou pra Paris ou Cannes, garçons e taxistas me perguntam de qual região da França eu venho. “De Pas-de-Calais”, digo eu com muito orgulho e o sotaque nortista de lá.
Em fins de 1976 eu era diretor de criação da Mcann-Rio, aos 25 anos com pouca prática no cargo, mas muito exercício matinal nas areias do Leblon, vôlei de praia, ginástica, karatê. E exercícios noturnos nos bares do mesmo Leblon.
Eu tinha um belo preparo físico e etílico. Resistência.
Usei tudo isso pra me defender de um cliente, que partiu pra cima de mim e quis me agredir fisicamente. Dei uns ingênuos golpes de karatê em legítima defesa e fui promovido.
Tudo começou tempos antes, com a agência McCann-Erickson, o marketing do cliente e a produtora PPP, do Paulo Parente e Paulo Dantas, planejando, criando e produzindo um comercial de TV. Era para a L’Oréal e foi um processo que durou dolorosos meses de idas e vindas de roteiros, textos, orçamentos, pré-produção entre Paris e Rio de Janeiro, na velocidade dos malotes internacionais na década de 70 do século passado.
Na apresentação final, ainda num equipamento jurássico que se chamava moviola, apareceu, pela primeira vez no processo, o presidente do cliente.
A equipe e ele viram o filme várias vezes. Acenderam-se as luzes da sala, silêncio total. Aquele silêncio constrangedor de moviola.
O presidente começou a conversar com a equipe dele em francês, a língua natal deles.
Falou um monte de merda, criticou o filme (com alguma razão), acusou a agência de uma maneira grosseira, desrespeitosa e injusta, me ofendeu pessoalmente, pegou pesado.
Fiquei quieto de início. Quando a coisa começou a engrossar, passei a responder tudo, também em um francês absolutamente fluente.
O presidente ficou puto comigo. Me questionou por que eu não havia dito que falava francês, que essa minha omissão era desonesta. Respondi à altura.
O presidente, baixinho e raquítico, menor do que eu, veio pra cima de mim babando na frente de todo mundo.
Bastaram dois simplórios e básicos golpes de defesa de karatê para eu imobilizar o cara, sem machucá-lo. E o presidente foi ao chão, inerte, bem abaixo dos marqueteiros dele na sala semiescura.
Voltei pra agência, largando todo mundo lá. Uns rindo, outros apavorados, um presidente no chão e um filme recusado definitivamente.
Nem cheguei até minha sala. Logo na recepção da agência, saindo do elevador, tinha um recado do gerente, Miguel Escobar, me chamando. Ele me demitiu sumariamente por ter batido num cliente durante uma reunião de trabalho. O tal presidente do cliente já havia telefonado e pedido minha cabeça ou ele tiraria a conta da agência.
“OK”, disse eu. Nem me dei ao trabalho de explicar a história, de me defender.
“Façam as minhas contas e me chamem”, eu disse ao gerente. “É dezembro, verão, vem Natal, depois Réveillon, depois Carnaval, puta calor. Vou pra praia. Me procurem lá, no Leblon, toda manhã, nas redes de vôlei”.
Poucos dias depois, me aparece nas areias escaldantes do Leblon, o Aprígio, motorista da agência, com os sapatos na mão e as calças arregaçadas.
Aprígio me disse que o Sr. Olesen queria ter uma conversa comigo naquela mesma tarde, lá no escritório da McCann-Rio.
Esse tal Sr. Olesen era o novo presidente da McCann-Brasil, um dinamarquês estranho e controverso, mas genial. E justo.
Ele me disse que não me conhecia pessoalmente, mas que só havia escutado coisas boas sobre mim, pessoal e profissionalmente. Comentários da equipe, clientes, jornalistas do meio, veículos, fornecedores.
Eu não merecia uma demissão, mas sim uma promoção por ter entrado no braço com aquele presidente do cliente, que tinha uma péssima fama no Sistema McCann Internacional. Fui promovido também pela razão que me levou a fazer isso: defender nosso trabalho e a agência.
Aceitei a promoção com alívio e prazer, mas negociei: antes, eu iria aproveitar no Rio o verão, Natal, Réveillon e Carnaval – como se estivesse em férias.
Meses depois, já no começo de1977, assumi a direção de criação do Grupo GM, na McCann-São Paulo, um grupo exclusivo pra atender à conta mais importante, política e financeiramente, da agência.
Anos depois, aquele presidente da L’Oréal foi expulso e processado pela matriz da empresa por desvio de dinheiro e corrupção.
Eu me senti duplamente vingado.
Merci a la vie. E a Madame Garry.