quinta-feira, 21 de novembro de 2024

A gente morre de saudade de nós

 

Marcio Fernandes – Uai, é muito bom ser coçado nas costas. Sabe daquela recuada estrutural da cadeira na qual as unhas passam por todo território? Cervical, dorsal e lombar. O Daniel pedia para ser coçado antes de dormir quando era criança. “Toça, pai!”. Ainda pede e eu o socorro na divisão de algum chocolate com muito glúten suíço, mesmo quando a gente não se encontra. Ele mora em Florianópolis.

 

Eu gosto mais de ser coçado de manhã. Aquela coçada ampla, geral e irrestrita para eu finalmente dar anistia ao tempo que me espera. Adoro a ditadura de não fazer nada. Britz me coçou antes de dormir como despedida dos 32 dias de ausência que estão a caminho amanhã. Como foi bom ela ter gostado de Todo Carnaval Tem Seu Fim, de Los Hermanos. “Toda folha elege um alguém que mora ao lado…”

 

Ontem eu me encontrei com grandes amigos e nós morremos de rir ouvindo Elizete Cardoso. Era aniversário antecipado do melhor deles. Demóstenes, desde 1977, o General, que sempre tem aquela alegria como se estivesse chegado de Ipanema. Eu fui o único que não levou presente. Menti que daria uma meia banda de leitoa de porco piau legítimo. A dona da casa mudou a configuração do presente para cinco frangos caipiras. Como ela me ama, perdoou a indelicadeza de eu ter avançado na comida antes de cantar parabéns. Foi tanto perdão que a Flávia me deu uma marmita com o bolo de 63 anos.

 

Depois de muita oferta de afeto, o Davi, lindo do cabelo de espiga de milho, aceitou meu colo e eu abandonei o vinho da Itália só para fazer o papel de tio-avô. Acho que sou, pois o avô verdadeiro é o irmão mais velho que eu tenho. Depois rolou, verdadeiramente, régio almoço de cozido à portuguesa com tudo separado. Eu fiz um prato bem brasileiro com arroz, frango ensopado e pirão feito com o caldo de todas as coisas que estavam no espetáculo de mesa. Na terceira chamada, descobri que na panela tinha rapa. Deitei no arroz até passar mal. O vinho do Porto desceu como se fosse o leite do primeiro dia de 1963.

 

Eu dei uma filosofada sobre ser ateu e ateísmo. O pessoal gostou tanto que partiu para o karaokê. Como o fuá era grande, fui atendido em interpretação de Christian & Ralf, sob o entusiasmo saliente da Lorena. Ela me disse que a paixão tem cheiro e concordei com exemplos.

 

Ao mesmo tempo pedi ao Benedito, o mais católico apostólico romano que conheço, para ter uma palestra construtiva com o arcebispo sobre a minha situação. Preciso fazer a Primeira Comunhão, mas sem aula de catecismo. A Lindalva me disse que, ao partir, quer primeiro se encontrar com o Arnaldo. Ela tem razão. Ele se foi de covid e a amava profundamente.

 

Sempre que a gente se encontra é permitido falar mal dos ausentes. Eles sabem que não poderiam ter faltado. Acho que por isso vou sempre me lembrar do abraço da Alcione. Falar mal morrendo de saudade é uma virtude. A verdade é que um quarto de século atrás ninguém faltava ao encontro de sábado e a gente se sentiu velho.

 

Só para sacanear, o Marcelão contou o meu fora no Bar Glória de Lisboa quando disse que era Melo descendente do Marquês de Pombal. Depois, é muito gostoso lembrar dos nossos muito bons momentos. Foram casos hilários muitas vezes contados. E o melhor: a gente não briga mais. Hoje, a gente morre de saudade de nós.

Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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