A Revolução que eu vi e vivi
Marco Antônio Chuahy — Meu tio Eduardo Chuahy era o orgulho da família. Inteligente, bonito, solícito, carinhoso… mesmo se eu usasse todos os adjetivos para defini-lo, certamente faltaria alguma outra qualidade.
Era oficial do Exército da Arma de Artilharia. Por ser mais inteligente que a maioria dos oficiais da sua época, tinha interesse pela política. Em 1.960, em pleno governo do Jânio Quadros, escreveu um livro de título “Jânio e a Petrobrás”, sob o pseudônimo de José de Bálsamo (assim como hoje, oficiais das Forças Armadas não deveriam se expressar sobre política). Não li o livro, eu tinha só 11 anos, mas como meu tio Eduardo era nacionalista, acredito que seu livro abordava críticas feitas pelo então presidente sobre a Petrobrás e o monopólio estatal do petróleo.
O pseudônimo José de Bálsamo não adiantou nada. Eduardo foi punido, pelo comando do Exército, com sua transferência para Santana do Livramento, unidade de fronteira e bem distante de tudo. Isso, em 1.960.
Quando Jango Goulart assumiu a presidência, depois da tentativa de golpe do Jânio, que culminou com sua renúncia, Eduardo Chuahy foi nomeado ajudante de ordens do marechal Assis Brasil, ministro da Guerra (aqui, cabe esclarecer uns detalhes: o então ministro da Guerra corresponde hoje ao ministro do Exército, e o posto de marechal foi extinto – o mais alto escalão hoje é general de Exército e marechal só existiria em tempos de guerra).
No dia 31 de março de 1.964, à noite, meu tio estava na nossa casa em São Paulo, com mais dois oficiais do Exército, fardados, quando recebeu um telefonema do Rio de Janeiro relatando sobre alguma movimentação de tropas. Na mesma hora, todos rumaram para o Rio, no fusca do Marcelo Alencar, civil e amigo do grupo, que, mais tarde, seria eleito prefeito e governador do Estado.
Essa é a primeira parte da história, e eu conclui que a revolução aconteceu, na verdade, dia 1 de abril. Mas essa data não prosperou, porque os militares devem ter pensado que, por ser dia da Mentira, avacalharia o movimento militar.
Meu tio foi preso e mantido incomunicável nos porões do DOPS em SP, sem direito a assistência jurídica. A família não sabia se estava vivo ou morto, e muito menos onde ele estava sendo mantido. Meu pai teve que recorrer até ao então governador de SP, Adhemar de Barros (que ele bem conhecia), para localizar onde estava seu irmão.
Fomos instruídos a manter a boca fechada sobre meu tio, porque a polícia política do delegado Fleury podia entrar nas casas sem mandado judicial a qualquer hora do dia ou da noite. A inviolabilidade do domicílio não existia na ditadura militar. Pena que os saudosistas do regime de exceção não saibam disso, porque não estavam lá na época.
Bem, meu tio Eduardo foi processado, respondeu a mais de 20 IPMs (Inquérito Policial Militar), foi inocentado de todos, se tornou alto executivo da Editora Vozes, do Rio de Janeiro, foi eleito deputado estadual e presidente da Assembleia Legislativa, e como governador interino pela ausência do Brizola, recebeu o presidente João Figueiredo em visita oficial ao Estado. Também foi presidente do Detran, e teve uma vida digna.
Depois, estudei na Faculdade Anhembi, me formei publicitário e senti o peso da Revolução na vida profissional, com a instituição da Censura Prévia. O que era isso? Todo o material a ser publicado ou divulgado pela imprensa teria que ser submetido ao crivo dos censores, que detinham o poder de vetar ou autorizar matérias, anúncios e comerciais de TV. O jornal O Estado de S. Paulo publicou 655 vezes textos do livro ‘Os Lusíadas’, de Luis de Camões no lugar de notícias vetadas pela censura. Seu irmão mais novo, Jornal da Tarde, publicou receitas culinárias, como forma de denunciar a censura que sofria. Certa vez, exibiu uma receita de Lauto Pastel, uma clara provocação ao então governador de SP nomeado pelos militares, Laudo Natel.
Os comerciais de TV tinham seus roteiros ou story boards submetidos aos censores. Só podiam ser produzidos após liberação pelos doutos especialistas, mediante um certificado de autorização. E, quando a gente enviava um comercial para ser veiculado, o tal certificado tinha que acompanhar o filme. Imaginem a burocracia que era e o tempo que tomava para viabilizar uma campanha.
A censura também tinha regras absurdas. Eu participei do lançamento da Revista Homem, que depois virou Playboy, da Editora Abril. Uma revista de mulher pelada, como eram conhecidas as masculinas na época, não se podia exibir nu frontal, ou fotos com dois seios ou duas nádegas.
Músicas eram censuradas. Algumas delas simplesmente porque seu autor era considerado subversivo. Chico Buarque foi um deles. Até que criou um heterônimo, Julinho da Adelaide. Aí, não teve mais problemas. A composição Jorge Maravilha tinha os seguintes versos, no refrão: “você não gosta de mim, mas sua filha gosta”. Era um recado ao então presidente Ernesto Geisel, cuja filha, Amália Lucy, gostava de Chico Buarque.
A censura vetou integralmente a novela Roque Santeiro, de Dias Gomes, depois de a Globo ter gravado muitos capítulos. Mais tarde, a novela foi regravada e exibida normalmente, e, quem assistiu, nunca conseguiu perceber nada que afrontasse o regime, na época.
São os recortes que eu registrei da censura instalada pelo regime militar. Nada de bom, um festival de prepotência e arrogância, responsável por absurdos. Se a censura nunca tivesse existido, não mudaria nada do que aconteceu. E não encheria nosso saco.
Muito bom meu amigo o seu relato das atrocidades cometidas pela ditadura militar, cujo representante mais recente é o ex-presidente Jair Bolsonaro, vangloriado por muitos mesmo após ter tentado dar novo golpe o de 8 de janeiro de 2023.
Nem o seu Tio, que era militar safou das maldades de quem não gosta da democracia. Mais um motivo que me orgulho de integrar a esquerda contra a direita conservadora liderado por esse cidadão de assim posso chamá-lo.
Que texto! Muito bacana.
Belo texto! Muito obrigado, Marco Antônio!