quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Caminho à margem do mar sem fim

 

Eu e Heloísa decidimos fazer o Caminho de Santiago há um ano, em uma das passagens dela por Goiânia (GO). Molly, só vim conhecer no Porto há dois dias. Cada um se preparou ao seu modo e ficou decidido que o grupo seria guiado pelo valor fundamental do Caminho: a preservação da liberdade de cada um.

 

 

Começamos na Praia da Labruge para evitar a Zona Portuária de Matosinhos. Para alegria geral da nação peregrina, o dia acordou cheio de sol. Já na passarela instalada na costa do Oceano Atlântico veio brisa amada com cheiro de mar puro nos socorrer na longa jornada.  Eu respiro as ondas, miro aquele horizonte profundo e me esqueço o que meus passos deixaram para trás. Todos meus corações agora estão imunizados da dor que se transfere para os pés. É tão delicioso o desejo de alcançar Compostela que nada corporal é suficiente para deter nossa aventura. Aliás, o dia foi tão bom que comecei a encurtar a passada para que o final da etapa não chegasse logo.

 

 

Eu e Heloísa pegamos muito um no pé do outro em baratos muito divertidos. Ao examinar informação sobre sítio arqueológico no Caminho, brinquei com ela que além de ter origem em casta rara da nobreza portuguesa, no Paleolítico pertenciam a ela todas aquelas terras do norte lusitano ocupadas por povos celtas. Morri de inveja e disse que ela seria excluída do grupo.

 

 

Já Molly é uma pessoa muito intensa e de pensamento vanguardista, como é natural em toda europeia de formação educacional avançada. Hoje retomamos a conversa que ela iniciou sobre o conceito de amor negativo de Robert Hoffman. Depois ela me fez entender que nada nem ninguém vai tomar por mim as decisões que considero inadiáveis. Por ter quase a minha idade, Molly tem percepção de que o exaurimento do tempo útil que nos resta é nosso bem mais valioso. Uma coisa mais ou menos assim em livre tradução do inglês: “Se você decidiu se mudar para a Europa venha logo e não deixe nada alterar ou adiar os planos”! Tenho certeza de que em algum modo Molly veio para ficar em mim nos passos do Caminho.

 

 

Em determinada altura foi natural cada um andar no seu ritmo e eu precisava da oportunidade de ficar sozinho. Deve receber o Prêmio Nobel da Paz quem inventou o fone de ouvido. Depois reagrupamos no centro histórico de Vila do Conde. Já havíamos tomado a decisão de caminhar cada um com a concha que simboliza o Caminho de Santiago. Como não havíamos ainda encontrado para comprar, logo chegou Heloísa que havia resolvido caminhar descalça pela praia: “Olha que milagre! Resolvi colher na areia algumas conchas para nós. Pensei como faria para furá-la e pendurar em nossos terços. Não é que encontrei exatamente quatro furadas pela natureza ou por algo que não tem explicação?”

 

 

No Caminho Português da Costa normalmente não há muitos peregrinos, mas tinha gente suficiente para aumentar nosso grupo. Não foi nada combinado, no entanto fizemos a primeira etapa na nossa, sem forçar amizade com ninguém. Só desejando mesmo Buen Camino ao pessoal.

 

Na chegada a Póvoa de Varzim estava todo mundo meio moído dos 29 mil passos dados no dia. Eu, que não sei cozinhar, nos últimos cinco quilômetros fiz preparo mental de robalo, picanha e vasta salada de atum. Vinho Alvarinho e sorvete de vanilla de sobremesa. Molly, muito obrigado pelos ramos de alecrim que você me deu! Heloísa, amanhã vou praticar as pequenas vinganças! Me aguarde!

 

 

Não tem nada a ver com o Caminho, mas a música do dia é Private Dancer de Tina Turner!

 

Marcio Fernandes é jornalista

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Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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6 comentários em "Caminho à margem do mar sem fim"

  • Avatar Noemy Faria disse:

    Estou amando cada pedacinho deste caminho. Sei que jamais seria capaz de fazê-lo, por inúmeras razões.
    Parabéns, Marcinho❤️

  • Anna Paula Anna Paula disse:

    A Luna minha filha fez agora o Caminho dos Pescadores em Portugal, que e considerado um dos mais belos da Europa !! 200 km em 5 dias !!! 🇵🇹♥️

  • Avatar Heliane Fernandes Moreira disse:

    Encantada , acompanhando tudo… viajando e refletindo sobre o “exaurimento do tempo útil…” Não adiar as decisões…aí meu Deusssssss… texto maravilhoso, como sempre.
    Quero fazer um trecho… e vou fazer …
    Vai dando as dicas por favor…

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