Como era fria minha terra nos tempos da flanela
Marcio Fernandes – Ninguém acredita que fazia frio em Goiânia nos anos 1960. Acho que até o começo do Governo Figueiredo ainda fez frio na cidade. Eu ia pra faculdade de manhã agasalhado. Não sei exatamente o que aconteceu. O fato, é que após a Campanha das Diretas Já, o frio foi embora e nunca mais voltou.
Não me recordo da última vez de Goiânia nublada, com cara de São Paulo em maio. Maravilha de três dias de frente fria vinda da Argentina. O vizinho europeu do sul já foi mais generoso em matéria de enviar massa de ar polar. A situação é tão ruim por lá que eles não conseguem mais produzir frio. Só na América Latina mesmo para um país entrar e permanecer um bom tempo no século 20, no primeiro-mundo, e depois retornar à pobreza típica do subcontinente.
Eu estava em Buenos Aires em viagem de família no dia em que o presidente Fernando de la Rúa despencou do poder. Nem na Catalunha eu vi tanta gente protestando nas ruas. Eu já tinha presenciado a queda do Collor no processo de impeachment, mas aquilo era García Márquez em detalhes de real política. Em dez dias a Argentina trocou de presidente quatro vezes. Depois, mergulhou de novo no peronismo para nunca mais conseguir sair do fundo do poço.
Minha avó Joanita Guimarães era uma mulher de pouca demonstração de afeto, mas excelente costureira. Fazia pra gente pijamas de flanela no inverno. Todo ano havia um comercial dizendo que as Casas Pernambucanas iriam aquecer o seu lar. A minha mãe comprava o tecido lá e depois ia na loja do Daniel Ortoff adquirir os aviamentos. Tinha tudo na loja do Daniel. Ele era um judeu polonês sobrevivente do Holocausto muito irritado. Daniel gostava de Goiânia, pelo visto. Antes de morrer, voltou à cidade vindo de Israel e aproveitou para fazer um tratamento no consultório dentário do meu pai.
Eu achava o máximo ter um pijama igual ao do meu irmão mais velho, mas ele ficava puto da vida justamente por entender o contrário. Irmão mais novo corta um dobrado nas mãos do mais velho. Meu pai liberava o carro pra gente sair no fim de semana, desde que o Marcello me levasse. Cinco quadras depois ele me desovava da viatura com recomendação de não falar nada, do contrário teria punição física. O cara era grande.
Uma vez em Lisboa eu estava num perrengue por conta de um botão da bermuda de trekking. Não tinha menor ideia de onde encontrar agulha e linha. Não tinha menor cabimento procurar loja de armarinhos, pois imaginei que isso era coisa de brasileiro do meu tempo de infância. Acabou que corri o risco da consulta e encontrei várias lojas de armarinhos. Ainda fica a dúvida da razão dos armarinhos. O que são exatamente armarinhos?
Goiano adora comentar a condição do tempo. Uma hora reclama do calorão, em outra comenta que o dia está com jeito de chuva. Eu acredito em mudança climática por ser uma questão da dinâmica física do planeta. Ainda não me convenci desta conversa de aquecimento global, mesmo no calor sufocante que torna a grama do quintal da minha casa em Pirenópolis um tapete quente que saiu do forno. Será ainda que existem as Casas Pernambucanas? Em caso positivo, será que tem flanela para minha avó Joanita fazer um pijama para mim quando vier a próximo inverno? Vó, não precisa fazer pro Marcello.
Marcio Fernandes é jornalista
Ilustração: foto do comercial das Casas Pernambucanas dos anos 1960
Nossa, que delícia de matéria. Viajei no tempo. Saudades de frio e chuva. Se não chegarem, vou pro RS. ❤️❤️❤️❤️
No ano que cheguei a Gyn vindo de SP (1984) passei um dos maiores frios da minha vida, claro que não como em SP que atingia 0⁰C, mas foi um frio de gelar os ossos, depois disso realmente é muito raro e com um tempo muito curto qualquer frio mais forte por aqui.
Boas lembranças. 💕