terça-feira, 14 de outubro de 2025

Diva da ópera servida em bandeja de paella flutua em meus ares imaginários de Valência

 

Marcio Fernandes – Uai, eu tenho uns 39% da sinceridade espontânea de Forrest Gump. Se me dá vontade de chorar, como agora, eu choro. Se me dá vontade de andar, vou a pé até Itapirapuã (GO) e não volto nunca mais para casa. Se me dá vontade de ouvir música, ligo a radiola e escuto Compay Segundo.

 

Às vezes a música cubana me dilacera só de pensar que Fidel Castro destruiu gerações de grandes artistas com um regime político corrosivo até a última gota do ácido sulfúrico contido no marxismo-leninismo.

 

Para alcançar a taxa de êxito de Gump ainda preciso correr os EUA da costa leste a oeste, e depois voltar para o Alabama. Tenho de me tornar herói na Guerra do Vietnã e derrotar os chineses em campeonato de tênis de mesa. Preciso também morrer de saudade de uma Jenny qualquer e dar seu nome a um barco pesqueiro que me fará milionário no negócio de camarão.

 

Por outro lado, minhas saudades são mais incisivas do que as de Forrest Gump. A mais doída diz respeito a alma 100% algodão que morreu subitamente. A mais deliciosa é do Arroz de Pato, religiosamente servido às terças-feiras em qualquer restaurante de gastronomia de Lisboa rés do chão. Ainda bem que a Bel Coelho me salva com o prato às vésperas de Ano Novo.

 

É tudo tolice, mas como a mãe do Forrest o ensinou no filme desde a infância: “Stupid is who supid does”. Em tradução livre, a expressão significa que os seus atos respondem por eles mesmos, independentemente da sua aparência. No meu caso, a situação da frase de efeito não se enquadra muito por ter as canelas secas.

 

 

Agora estou em trem a 250 km por hora e com a tristeza se renovando na passagem de cada dormente. Como nos 300 km que separam Valência de Madrid estão assentados 499.800 dormentes, minha cota de tristeza é grande. Tudo porque preciso voltar ao Brasil.

 

Toda vez que ando de trem me dá uma saudade do sabor do arroz, feijão, bife acebolado e salada servidos no vagão-restaurante que nos levava de Leolpoldo de Bulhões a Goiandira (Goiás) no final dos Anos 1960.

 

Naquela época, em vez de ter os dormentes como referência numérica da tristeza, usava os minutos que seguiam desde o fim do programa Fantástico até o horário de ir para escola na manhã da segunda-feira. Funcionava.

 

 

Ontem eu e Britz fomos a restaurante italiano para exaurir os últimos euros da viagem. No cardápio da noite, vinho da Rioja, berinjela ao forno de entrada e para mim linguine com molho trufado de pistache e alho, com exatamente oito fatias de trufa negra de bonificação.

 

Dividi o prato em igual número de regiões administrativas autônomas e fui recolhendo cada fatia da trufa no alto da montanha da pasta acomodada em prato fundo tipo cisterna. A gente estava quase no fim do baile quando rolou “Sentado à beira do caminho” em italiano na versão de Ornella Vanoni.

 

Faltou um vinho do Porto para fechar a noite feliz em Eixample, o bairro mais macio de Valência. Por lá, todo mundo dá bom dia em qualquer idioma, embora prefira em catalão.

 

As floristas te deixam fotografar arranjos vaidosos de orquídeas e em alguns comércios há a atividade combinada de venda de flores e vinhos. Em outros, de vinho e aluguel de bicicleta.

 

 

As ruas de Eixample são puras como o Santo Sudário e as vitrines das padarias tem aroma de trigo colhido a mão. O grão é processado na pedra mó dos moinhos enfrentados por Dom Quixote em Consuegra, por isso são conhecidos pelo sabor da utopia.

 

Por falar em quimera, comi além da conta no tal restaurante italiano. Fantasmas e lobisomens me atormentaram a noite inteira por conta de indigestão. Tive um pesadelo de tendência esquerdista pavoroso sobre o Brasil.

 

Não me lembro bem a razão, mas estava hospedado em palafita de Belém (PA), a 500 euros a diária, para participar de plenária sobre a causa palestina na COP-30. Logo eu que tenho pavor de qualquer tipo de reunião e abomino os apologistas do terrorismo do Hamas.

 

Por pura birra, agora eu irei de verdade para a capital do Pará e farei a proposta de trocar a Amazônia, território de meu inteiro domínio, por uma casa meia-água de dois quartos em Itapirapuã e oferecer como troco Barreirinhas, o pior lugar do Maranhão.

 

 

O plano é convencer o pessoal de Itapirapuã a declarar independência do Brasil, constituir um banco central com unidade monetária chamada itapurano e conversibilidade de 1 por 1 com o dólar. Em troca, só espero receber cidadania local e ter um passaporte diplomático.

 

Quando se menciona Valência, Espanha, imediatamente vem à mente o lugar-comum de bandejas enormes de paella de frutos do mar. A cidade, no entanto, precisa ser melhor considerada no conceito turístico, até em razão de a Paella Valenciana ser um prato que passa longe do Mediterrâneo e se compõe da mistura proteica de frango e coelho.

 

Se quiser um conselho, ao chegar na cidade em busca de tal iguaria, corra dos restaurantes do Centro Histórico e tente algum estabelecimento nos bairros de Exaimple ou Ruzafa, onde tradição e bom-gosto serão servidos por um preço justo.

 

Tenho uma certa dificuldade de indicar restaurante por dois motivos: prefiro a gastronomia rasteira, não frequento lugares sofisticados e caros, além de achar que comida é algo muito pessoal, como o endocrinologista e a cama do seu quarto. O restaurante italiano foi a exceção da exceção.

 

 

Mas há alguns pratos de caráter regional que merecem consideração. A passagem por Valência foi para comer paella, tomar uma cerveja tirada de 500 ml acompanhada de croqueta e depois anchova marinada no azeite sobre fatia de pão.

 

Deu tudo certo, mas não precisava ter dado um tapa em empanada de morcilha com cebola caramelizada. Nem ter avançado em manjado hot dog com cara de super roubada em desqualificada feira medieval nos Jardins do Túria.

 

Morri em grana sem necessidade, minha fauna de estimação do sistema digestivo dançou o miudinho a noite toda e tive outro pesadelo, desta vez de caráter centro-direita: uma diva da ópera, loira e gordinha dos seios fartos, era servida em bandeja de paella no centro histórico da cidade mais linda da Espanha.

 

Marcio Fernandes é jornalista
Fotografias do autor

Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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