quinta-feira, 21 de novembro de 2024

É positivo evitar a revolta preparada

 

Eu sou do tempo em que se podia fumar no voo. Era comportamento tóxico, mas socialmente considerado saudável e legal. Logo que o comandante ganhava altitude de cruzeiro, a luz de proibido fumar se apagava, eram servidos whisky em garrafa boca franca, alguns petiscos, e a gente acendia um cigarro. O publicitário Ailton Lima quase chora ao se lembrar desta época cruzando o Atlântico. Depois de fazer aquele primeiro atendimento do voo, as aeromoças se dirigiam, com extraordinária elegância, ao fundo da aeronave para dividir cumplicidade de fumar a bordo. Hoje é conduta nojenta, com razão.

 

As normas atuais de costume não eram relevantes, para ficar próximo, na virada do século 21. Estive como repórter na Argentina logo depois do fim da Era Carlos Menem, um peronista liberal com cara de vigarista refinado. Os vizinhos europeus do Sul, no máximo da arrogância de prosperidade enganosa de um peso um dólar, tinham o descaramento de chamar os brasileiros de macaquitos. Curto tempo depois, desconfiados da decadência, passaram a ter obsequiosa admiração pelo Lula. São as pequenas vinganças.

 

Coisa de 15 anos atrás, não havia esse patrulhamento da palavra e dos gestos hoje moralmente inaceitáveis e em algumas situações de conduta criminosa. Você administrava a coisa na conversa. Me lembro de situação numa garrafeira em Lisboa. Portugal estava no limbo da Crise de 2008 e a proprietária da loja de vinhos comentava comigo sobre a excelente oportunidade de investir em imóvel na cidade. Os bancos estavam lotados de ativos pobres das hipotecas vencidas.

 

Com 100 mil euros era possível adquirir apartamento qualificado em Lisboa. Por agora, algo semelhante a 700 mil euros paga a conta. A empresária me aconselhou que o melhor bairro para se viver na capital portuguesa era Campo de Ourique. Espontaneamente ressaltou as qualidades do lugar: “Lá não há cigano, black, marroquino ou brasileiro!” Achei assim engraçado, paguei os vinhos e menti à fidalga senhora que era muito rico. Faria investimento expressivo para mudar o perfil étnico do bairro.

 

Só quando você é milionário, padrão Hotel Ritz de Paris, que vai ser pajeado permanentemente por europeu ou americano. Tem a barreira do idioma. Às vezes você nem percebe que está sendo super inconveniente ao ouvir mensagens do celular no trem. Em várias ocasiões, a expansão física do brasileiro incomoda o pessoal. Os caras têm um comportamento mais para contido, sem muito abraço. Há sim os xenófobos convictos e até com organização partidária. Na maioria, gente que não aproveitou bem a escolaridade e precisa ir urgentemente ao dentista.

 

Acho que é preciso ter alguns cuidados para não cruzar a linha da indiscrição quando você está em um país estrangeiro. Não é exatamente clichê, mas é falta de educação falar de política com americano que você acabou de conhecer. O que pode ser positivo com o espanhol. Por experiência própria, você vai dar bom dia a cavalo grande ao comentar a Guerra na Bósnia com um croata. A não ser que conheça um judeu de esquerda, falar dos direitos da Palestina no Carmel Market em Tel Aviv é procurar problema.

 

Por que tenho de interpretar mau humor como racismo? Eu estava deixando a Alemanha, morrendo muito de sono, depois de longa viagem. A figura que fica na entrada do embarque cismou com o tamanho da minha mochila. Tava na medida. Eu disse educadamente que era um problema meu com a companhia aérea. Ela estava de máscara, mas os olhos fundos mostravam uma mulher na pior das caladinhas, estágio superior da ressaca. Ela tinha cara de quem havia passado a noite no fuá de alguma cervejaria de Munique, fumado algo estragado e não comido ninguém. A minha situação era muito melhor do que a dela. Apesar da fome, estava de férias mochilando na Europa.

 

Acho que em relação ao poder público, muita gente considera falta de educação o sistema do cara. Ele está trabalhando e autoridade é coisa séria no primeiro-mundo. Nem tem essa esculhambação do Brasil. Eu arrumei uma confusão de graça ao esquecer na esteira do raio-x do Aeroporto de Madrid um tubo com cartaz muito bom da Semana Santa Sevilla 1955. Paguei muito barato pela litografia. Não podia voltar. Tive de sair do aeroporto e passar novamente pela revista. O policial me entregou o material, mas antes me deu uma escovada mais para média intensidade. Deixar coisas desabrigadas em aeroporto é interpretado como risco de ataque a bomba.

 

Tem o outro lado da coisa. Às vezes você acha que foi muito bem-tratado independente de raça, gênero e opinião. Foi de alguma maneira, mas morreu em uma grana sem necessidade. Tem de desconfiar do queridismo do cara na banca de fruta no Mercado de Funchal. Ficar longe do encantador de serpente em Marrakech. Não cair na conversa de vendedor de tapete. Cortar de plano a oferta dos serviços de guia rabínico de mentira em Jerusalém.

 

Eu quase caí no papo furado de uma senhorinha em mercearia de Beirute. Adorou eu ser brasileiro. Disse que tinha parentes em Anápolis (GO). Só não chorei porque ela me deu troco com diferença negativa em dólar. É só trabalhar o psicológico, não praticar a mania de perseguição e seguir as regras que as chances de dar certo estarão ao seu lado em qualquer viagem. É bom evitar a revolta preparada e lembrar que o comandante tem esse nome porque manda na aeronave.

 

Marcio Fernandes é jornalista

 

Ilustração: desenho de Millôr Fernandes

Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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