quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Eu nunca vou pedir pizza na solidão

Marcio Fernandes – É carnaval e sinto alegria arrebatadora por não ter TV aberta em casa. Uai, não estou exatamente feliz na celebração da segunda semana de alimentação de Ifood. Nada contra o aplicativo. Funciona. Rola tristeza dos motoqueiros da entrega na chuva. Sempre muito subservientes, os coitados se alegram com gorjeta de 5 reais no País da humilhação por centavos. O problema grande é a comida com sabor plástico de garrafa reciclada de água sanitária.
Depois de tantos fracassos, sem mais saber o que pedir, no sábado de carnaval eu fui atrás de um desconhecido arroz japonês. Era uma fraude. Imaginei o sensacional arroz frito de um restaurante vietnamita escondido em Barcelona que salvou minha pátria uma vez. Acabou que o prato entregou o que Britz sempre me advertiu sobre o cardápio maldoso de Mao Tsé-Tung. Tive encontro com os monstros marinhos que atormentavam os europeus no desconhecido mar-oceano antes de Vasco da Gama.
Houve dois momentos de frustração. De cara, achei que estava fraco o quantitativo daquela embalagem que cabia na palma da mão. Depois, a decepção qualitativa. Quando olhei para o arroz japonês, de aspecto francamente gosmento, imaginei que na finalização do prato o auxiliar de cozinha deu uma mastigada no material com arcada falha de um incisivo superior e dois pré-molares inferiores. Assombrações fizeram um desfile de escola de samba no meu estômago e acordei de madrugada suando frio de indigestão.
Lá pelas 4 da manhã tentei melhorar minha vida com um copo de Pepsi-Cola, o pior castigo que se pode dar para uma neta desobediente. Caso minha avó Carlota estivesse viva, certamente teria me socorrido com dose de bicarbonato e preparado chá de canela da folha colhida no pé plantado pela avó Juanita. Elas não se davam, mas o chá de canela nos unia como se fôssemos uma família governada pelo trinômio flora, compreensão e funcionalidade.
Passada a tormenta, mandei para o forno seis biscoitos de queijo em forma de orelha moldados pela sempre carinhosa Guilhermina e entrei no chá de pérola de jasmim. Só lembrança boa das comidas de muitas trilhas de longa distância, quando a fome é a parte mais bem recompensada de andar quilômetros a pé. A empanada de atum da Galícia ajudou muito na sagrada união com São Tiago. Teve um rico ensopado de feijão e embutidos na alta montanha das Dolomitas que supriu dois dias de frio e insegurança alimentar grave sem tomar banho.
Uma das trilhas de longo curso mais marcantes em termos de alimentação foram os 135 km entre Lucca e Siena pela Via Francigena. Na Toscana havia celebração da temporada de trufa branca e isso alterou completamente as chegadas moídas com mochila nas costas. Me lembro de uma pasta com molho de lebre em almoço que comemorava casamento cigano. Infelizmente, não fui convidado para a festa. Mandei o pessoal às favas e fiquei super amigo do jarro do vinho da casa.
Nos seis dias mochilando no Líbano eu comi em Beirute quibe todos os dias no almoço para provar minha tese de que não existe quibe com catupiry. No Peterpad, na Holanda, não tinha mais limite para medir o cansaço e a fome quando encontrei um restaurante aberto no final da tarde de domingo em uma aldeia de 250 habitantes. Havia um único prato disponível, conhecido em português como costelinha de porco. Pensa em uma comida boa para um caipira com 150 anos de Goiás?
Onde não há carnaval, como é o caso de Goiânia, é operado um rito de passagem muito interessante. A suavidade toma lugar do ruído. A propriedade das ruas deixa de ser exclusiva dos carros e há uma gleba de terra respeitada na faixa de pedestres. Até o vento, que não tem espaço para circular no Setor Oeste, brinca de fazer curva entre os prédios. Ele apareceu na porta de casa feliz por entrar no apartamento e balançar o mar do pescador na tela de Newton Rezende.
Nenhuma notícia sobre as realizações extraordinárias das pernas da Ivete Sangalo em Salvador vai me fazer pedir pizza no Ifood. Nada na minha vida acabou em pizza e ela geralmente me traz consequências desastrosas. Pizza é um cheque em branco da alienação parental. Só pai ausente e mãe descompensada pedem pizza de quatro queijos no jantar para as crianças iludidas. Pizza é um convite para mal estar em oito pedaços. É a pior pedida para um dia de carnaval na solidão e não vai rolar. Agora eu sonho com peixe na telha ouvindo Na Quadrada das Águas Perdidas do Elomar.

Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

As opiniões emitidas nos textos dos colaboradores não refletem necessariamente, a opinião da revista eletrônica.

Deixe uma resposta