Expresso da agonia a caminho do Kosovo
Marcio Fernandes – Nem na Bolívia, um dos países mais atrasados e pobres do mundo, eu transitei em transporte público tão desqualificado como o micro-ônibus da “euro linha” que liga Escópia (Macedônia do Norte), a Pristina (Kosovo). Notas 0,7 para limpeza, 0, 1 para a condição das poltronas puídas e 1,8 para a conservação geral do veículo em escala de zero a dez.
A parte de baixo do assento, completamente solto, me obrigava a firmar os pés no chão para não fazer o movimento de vai e vem entre a aceleração e o freio do motorista. Não sei por qual a razão, me veio à cabeça aquele grande sucesso da dupla Jane e Herondy dos anos 1970: “Não se vá, eu já posso suportar a minha vida de amargura…”
A paisagem da saída da capital da Macedônia lembra muito a passagem por Águas Lindas (Goiás), definitivamente o pior município do Entorno do Distrito Federal. Quando eu pensei que minha situação havia chegado ao paroxismo, os acontecimentos iam aumentando a intensidade da agonia por estarem embarcados um chinês com roupa de crochê comendo batata frita com barulho na mastigação, um mexicano que se dizia da Califórnia e uma hiponga em intenso falatório e vestida de roupa indiana.
Não demorou meia hora de viagem para o motorista parar no primeiro posto de gasolina para tomar café e fumar bem ao lado da bomba de combustíveis. Fato que se repetiu três vezes em trajeto de 80 km. O excomungado ainda arrumou um amarra-cachorro, super incompetente, que fez todos os passageiros preencherem os dados pessoais em lista de completa inutilidade e disposta em prancheta imunda. O lado positivo da viagem foi que consegui tirar um cochilo e cheguei mais ou menos inteiro em Pristina.
A capital do Kosovo não tem nada de monumental. Não pode ser considerada uma cidade linda, mas tem seus encantos, como a Praça Skanderbeg de 40 mil m² de área e o Boulevard Madre Tereza de Calcutá, exclusivamente destinado a pedestres e emoldurado por arborização de plátanos.
A imensa maioria dos 1,7 milhão de kosovares são de origem albanesa, muçulmana e se concentra em Pristina. Eles são de uma educação refinada e altamente solícitos. Nas ruas andam muitos bem-vestidos e possuem uma elegância natural muito interessante. Não é difícil de encontrar quem fale inglês, o que facilita a situação. Mesmo em circunstâncias em que o idioma é uma barreira, a gentileza bilateral cuida de dissolver qualquer embaraço.
Eu estava no Mercado Verde de Pristina, uma feira-livre de alimentos permanente, e solicitei ao proprietário de uma banca exclusiva de pimentões, Shaban Bislimi, para fotografar os produtos. Nos entendemos por mímica e nosso diálogo terminou em termos super positivos depois que ele entendeu que eu era brasileiro.
Impressiona em Pristina a quantidade de mesquitas. É uma colada na outra e se confunde o canto de cada uma destinado a chamar os fiéis a Maomé para as orações diárias. Para se ter ideia, o país possui um território equivalente a metade de Sergipe, o menor estado brasileiro, e tem mais de 800 templos destinados a Alá. A Grande Mesquita da cidade, também conhecida como Imperial, datada de 1461, é de uma beleza de chorar e ostenta um minarete de 83 metros de altura.
Caso você tenha algum problema legal, ou se envolva em confusão, o que não é meu caso, advogado é o que não falta em Pristina. Os anúncios de escritórios de advocacia se sucedem nas fachadas dos edifícios. Dentista também não falta, sinal de que os kosovares quidam bem da saúde. Outra coisa que há em profusão são as livrarias, cada uma mais interessante do que a outra e sempre bem frequentadas. Se fosse realizado um Concurso de Chacretes, a cidade seria o lugar ideal. Elas desfilam pelas ruas com ímpar imponência com suas longas botas de todas as cores.
O trânsito de Pristina lembra São Paulo com engarramentos enormes. O diferencial é o buzinaço que o pessoal daqui não economiza. Por ter sido parte do Império Otomano, as ruelas estreitas e curvas do centro da cidade sugerem o mesmo traçado urbano das medinas e são muito bacanas de serem exploradas a pé.
Como a moeda local é o euro, é bem fácil se ter noção dos preços de alimentação, hospedagem, vinhos etc. É tudo muito barato se comparado com qualquer cidade europeia, especialmente diária de hotel e restaurante. Pristina possui um excelente equipamento cultural e carrega a tradição de ter ótimas bibliotecas há muitos séculos. Em 1982, foi concluída a construção da Biblioteca Nacional do Kosovo. É tudo muito grandioso neste edifício projetado pela arquiteta croata Andrija Mutnjaković.
Erguido em uma colina suave bem próxima da universidade do país, o edifício com área construída de 16,5 mil metros quadrados, ostenta 99 cúpulas e abriga alguma coisa próxima de 2 milhões de itens. Exagerada em todos os sentidos, a obra pública é considerada, com muita razão, a mais feia da Europa.
Marcio Fernandes é jornalista
Fotografias do autor