quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Fabulação, sonho e delírio como potência da invenção

 

Escrever outros corpos, criar outras margens é o nome da exposição que estreia dia 8, na Galeria Belizário, em Pinheiros, São Paulo, com obras de Marcelo Solá (desenho acima), Estêvão Parreiras, Laura Gorski, Stella Margarita, Raquel Nava, e a série de fotografias “Apneia”, de Juliana Franco, Rafael Abdala, Sara Não Tem Nome e Victor Galvão. Fica em cartaz até dia 12 de novembro. O belíssimo texto abaixo sobre o que retrata a mostra e os trabalhos dos artistas é da curadora Bianca Coutinho Dias.

 

O diálogo que acontece nesta exposição se dá por vibração e contágio. Em uma zona fronteiriça – um espaço tão visível quanto invisível – o conjunto de obras forja um corpo que produz devires em potencial. O que temos em jogo, na proposta da escrita de outros corpos e da criação de outras margens é, justamente, a abertura de uma dimensão da experiência informe que abre frestas à uma nova constelação de forças desestabilizadoras que criem condições para que se inventem novas cartografias e paisagens.

 

A fabulação e o sonho são partes do diálogo que a psicanálise estabelece com a arte, tomando a noção de delírio – tal como Freud a concebe, como tentativa de cura – como um movimento disruptivo capaz de transformar a realidade, como o fazem os artistas. O delírio pode denunciar as tentativas de cerceamento subjetivo e abrir as portas da invenção. No lugar de “loucura”, falamos então em “delírio” como gesto político-teórico de afirmação e recusa de delimitação patológica. Na arte delira-se. O pensamento sai dos trilhos que fixam a realidade, ensaiando modelos de mundo e fazendo convites para que reviremos o que está pronto. Diante da degradação simbólica dos tempos atuais e de rasteiros projetos políticos delirantes, podemos invocar a força delirante que a arte traz em seu bojo enquanto potência propositiva e fabulatória.

 

Fabulação e espanto pulsam no trabalho de Stella Margarita que, mesmo decididamente centrado na figura humana, promove uma distorção na representação e na ideia de retrato, tratando de temáticas singulares que buscam o tremor do mínimo. São gestos que se desvelam no limite do imperceptível em cenas que evocam uma sacralidade – como em “Batismo” – ou que reverbaram momentos domésticos. A grandeza de sua obra se funda na beleza do ínfimo, na poesia que amplia todo o deslocamento.

 

A força pulsional de Stella Margarita encontra eco no trabalho de Raquel Nava que, de forma distinta, também opera a partir do assombro e da desnaturalização. A obra de Raquel, composta por objetos do cotidiano e partes de animais, dialoga com a pintura e se desdobra em experiências diversas, sinalizando o interesse por questões corpóreas e de natureza material. As relações entre humanos e animais revelam questões profundas da vida e da morte.

 

A série de fotografias “Apneia” é resultado de um encontro de experimentação entre quatro artistas – Juliana Franco, Rafael Abdala, Sara Não Tem Nome e Victor Galvão. O ensaio cria tensão entre os tempos e corpos pressupostos pela indústria da moda mas, ao contrário de uma imagem clara e objetiva, o que se apresenta, em película fotográfica granulada, é um corpo que se esconde, se retorce, se volta para dentro de si mesmo e se confunde com o espaço e a superfície ruidosa.

 

O corpo é também o centro do trabalho de Laura Gorski. Após uma imersão na floresta amazônica, a artista foi atravessada por uma série de questões oriundas de um encontro com forte potencial encantatório e uma relação de abertura e circularidade. O encantamento pelo desconhecido e o aspecto indomável da natureza fazem com que a artista engaje seu próprio corpo em uma imensidão selvagem e generosa. A partir de técnicas diversas com pigmentos, texturas e espessuras distintas, a artista inclui no seu trabalho a transfiguração do visível através da relação com a terra e seus frutos e ecos.

 

Também é desenhando o absurdo e criando seu próprio santuário que Estêvão Parreiras nos leva a um salto no abismo. Seu traço, tão exato quanto vertiginoso, porta a ambiguidade do fluxo do jogo da vida. Sua relação com o desenho é estruturante e sua obra se concentra – de forma múltipla, plural, nômade e delirante – na observação dos ritmos diversos que vibram e ecoam em tudo. Para Estêvão, desenhar é uma forma de escrever. No corpo, na escrita e no entrelaçamento de ambos há desvios, mergulhos, perigos, inquietações: fragmentos e minúcias de um gesto que se encontra em constante deslocamento, abrigando o tremor das coisas e capturando o absurdo, o sagrado e o imponderável da existência. Seus desenhos abrigam narrativas dos mitos, épicos e cosmogonias ligados ao campo do lirismo popular ou religioso.

Outra obra de Solá que compõe a exposição

 

Os trabalhos de Estevão são pequenas reconstruções do mundo, numa fina e aguda conversa com a obra do também goiano Marcelo Solá, que cria uma taxonomia infinita de um mundo em vias de nascer, um inventário de casas e bichos como uma maneira de adentrar as frestas da cintilância do desenho. Marcelo faz vicejar as minúcias das origens da forma e escapa a qualquer classificação. Em seu mundo, os animais nos espreitam – distantes e próximos, fascinantes, divertidos e assombrosos – animados pelo traço errante e pela cor. Como que surgidos de um “desenho puro”, eles nos olham e nos despojam de nossa arrogância narcísica: apenas uma linha fina separa a humanidade da animalidade, o doméstico do indomesticável. De maneira sensível, Solá agrupa arquiteturas fantásticas e bichos, elementos díspares que, através do desenho e da serigrafia, são justapostos numa taxonomia infinita e ancestral. Animais e formas arquitetônicas muito singulares se embaralham e nos levam a espaços mentais e temporais, fazendo-nos deslizar em sentidos outros. A dimensão do humor e o flerte com o que escapa aos sentidos domesticados permitem que o mistério dos primeiros tempos nunca se dissipe: são garatujas, traços esboçados de forma ruidosa, preservando a centelha de inacessível e irrepresentável de uma obra.

 

Os artistas reviram margens e escritas e nos recordam agudamente de um poema de Wislawa Szymborska: “no meio do corpo da holotúria se abre um abismo / com duas margens subitamente estranhas / em uma margem a morte, na outra a vida”.

 

TEXTO: BIANCA COUTINHO DIAS POSTADO POR BRITZ LOPES

Fotos: Paulo Dourado

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Este post foi escrito por: Britz Lopes

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