Homens e ratos: Camundópolis é amostra de um mundo doente
Em junho de 1972, diante da Royal Society of Medicine em Londres, um senhor franzino de barba grisalha pediu a palavra. Chamava-se John Bumpass Calhoun, e sua primeira frase desarmou a plateia: “Falarei majoritariamente sobre ratos, mas meus pensamentos estão em homens, na vida e sua evolução”. Não era exatamente o tipo de abertura que se espera de um cientista em uma das instituições mais respeitadas do mundo, mas todos ficaram atentos.
Calhoun começou a revelar o que ele chamou de Universo 25: uma cidade inteira de ratos que se tornou um dos experimentos mais polêmicos, embora pouco comentados da nossa história. O trabalho dele passou a ser usado como um modelo animal análogo ao colapso da sociedade humana, e seu estudo tornou-se uma ideia importante na sociologia e psicologia em geral.
Raio-x do experimento — O cientista construiu uma cidade de ratos com 16 prédios idênticos, mais de 250 apartamentos, locais específicos de refeição e tudo que os ratos precisavam para “viver bem”. Tudo começou com 4 casais de ratinhos — ou seja, 8 indivíduos no total. A única limitação era o espaço.
Cada aspecto do Universo 25, como este modelo específico era chamado, foi projetado para atender ao bem-estar de seus roedores residentes, aumentar sua expectativa de vida e permitir que eles se acasalassem. Calhoun marcou cada animal com uma cor para identificação, sendo que ele e sua equipe ficavam sentados por horas, todos os dias, por mais de três anos, observando o que acontecia.
Há meio século, quando o estudo foi publicado, as descobertas não foram tão chocantes, mas, à medida que o tempo passa, os resultados desse experimento se tornam, de certo modo, assustadores. Dos quatro casais iniciais, após um curto período de 110 dias de adaptação, os primeiros filhotes nasceram — com a população dobrando a cada 55 dias.
Nesse período inicial, os ratos exploravam o espaço, reconheciam territórios e estabeleciam as hierarquias iniciais — assim como humanos fazem. Depois disso, com abundância de recursos, a reprodução aumenta e inicia uma explosão populacional, resultando em um número de roedores dez vezes maior do que inicialmente em 10 meses.
Nessa altura do campeonato, ratos alfas estabelecem a dominância e vão dominando o espaço — lutando e mordendo os ratos mais frágeis. Normalmente, na natureza, um rato que perde uma luta foge para algum canto distante para recomeçar em outro lugar. Na utopia dos ratos, no entanto, os ratos perdedores não conseguiam escapar.
Calhoun os chamava de “abandonados”, até porque eles se escondiam durante boa parte do dia e saíam na madrugada apenas para comer. Conforme a população crescia, enormes hordas de “fracassados” se reuniam no centro do cercado, cheios de cortes e cicatrizes.
A partir daí, comportamentos anômalos começaram a surgir, tanto nas ratas fêmeas, quanto nos ratos machos. As fêmas começaram a se isolar em apartamentos, rejeitando e se afastando dos machos. Muitas ratas eram incapazes de levar uma gravidez até o fim ou, quando conseguiam, de sobreviver ao parto da ninhada. As ratas já não eram tão boas em suas funções maternas devido ao estresse pretérito.
Os ratinhos machos deixaram de buscar o sexo com as fêmeas e se tornaram extremamente vaidosos — sendo apelidados de “os belos”. Hiperatividade frenética, movimentos aleatórios e até brigas sem propósito, uma espécie de violência por violência. Os camundongos passaram a se dividir em grupos, e aqueles que não conseguiam encontrar um lugar nesses grupos se viam sem ter para onde ir.
Agora é que fica ainda mais interessante…
À medida que o tempo passava, os alfas restantes envelheciam e reproduziam-se menos, fazendo com que a taxa de natalidade diminuísse. O curioso é que muitos dos ratos que ainda podiam conceber, como os “belos” e as fêmeas isoladas, perderam a capacidade social de fazê-lo.
Basicamente, ao invés de interagir com o sexo oposto, os machos se limpavam compulsivamente e as fêmeas não se misturavam. Depois de atingir um íco de 2.200 ratos no 19º mês, a população começou a diminuir.
Camundongos nascidos nessa fase de caos já não conseguiam formar laços sociais normais, nem se envolver em comportamentos sociais complexos, como galanteio, acasalamento e criação de filhotes.
Incapazes de encontrar seu lugar na hierarquia, os mais jovens se tornaram desajustados, as fêmeas solteiras se retiravam para os ninhos isolados nos níveis superiores dos apartamentos da cidade.
No extremo oposto, os outros machos tornaram-se completamente apáticos, passando o dia comendo, bebendo, cuidando-se, mas sem interagir com os demais. Enquanto isso, os machos alfa restantes exibiam agressividade extrema, chegando ao canibalismo e violência sexual.
Porém, o mais perturbador era o comportamento das mães: oprimidas pelo estresse da aglomeração, muitas descuidavam de suas crias, ou as abandonavam e atacavam. A mortalidade infantil disparou, alcançando até 96% em algumas áreas. Apesar da capacidade de espaço para até 3.840 animais, o número de roedores nunca ultrapassou os 2.200.
O último nascimento foi no dia 920. A partir daí, a queda foi livre até a extinção. Os pobres roedores esqueceram-se de como se cuidar, cuidar de sua prole e até mesmo de interagir normalmente. Os machos perderam o interesse de procriar, as fêmeas abandonaram os filhotes e a violência, sem motivo, se tornou comum.
Houve queda na natalidade, colapso da organização social e, por fim, a extinção. Será que há alguma semelhança? Calhoun chamou a decadência de “afundamento comportamental. O termo sugere que a quebra das estruturas sociais e a desordem interna são mais prejudiciais para a sobrevivência do grupo do que a escassez de recursos.
Não foi a falta de recursos que destruiu a “Camundópolis” — foi o colapso interno da própria população. Não somos camundongos, mas também estamos em declínio. Mesmo com comida, água e abrigo de sobra, os ratos simplesmente pararam de se reproduzir, assim como parece acontecer nos países mais ricos do Ocidente.
O Brasil, por exemplo, viu sua taxa de fecundidade despencar de 4,1 filhos por mulher em 1980 para 1,6 atualmente. Na prática, já estamos abaixo da taxa de reposição populacional (2,1). Se a curva continuar, estaremos perto de 150 milhões em 2.100, contra os 215 milhões atuais.
O mesmo movimento ocorre em quase todo o mundo desenvolvido:
Alemanha: 1,5
Itália: 1,2
Espanha: 1,3
Japão: 1,2
Coreia do Sul: 0,7 (a menor taxa do planeta)
Estados Unidos: 1,6
Não falta alimento, nem abrigo, nem tecnologia para as classes mais altas nesses países… Sobra estresse, hierarquia social e até um pouco de caos.
No Brasil e no mundo, existe um padrão que, quanto maior a renda e o nível de educação, menor a quantidade de filhos: famílias de baixa renda (até 1 salário mínimo per capita) apresentam uma taxa de fecundidade de aproximadamente 2,5 a 3 filhos por mulher. As de renda média (2 a 5 salários mínimos) têm, em média, entre 1,7 e 2 filhos por mulher. Já famílias de alta renda (mais de 5 salários mínimos per capita) entre 1,1 e 1,5 filhos por mulher, ou seja, muito abaixo da reposição populacional.
É justamente nas famílias mais próximas da “utopia material” que a natalidade entra em colapso.
Até hoje, apesar do plano do autor, muitos dizem que não se pode comparar a situação dos humanos com a dos ratos, indicando o experimento como “inconclusivo” para humanos.
Há também preocupações éticas relacionadas aos cuidados com os animais, vieses experimentais e má interpretação, sendo que muitas escolas argumentam que esse tipo de estudo jamais seria aprovado hoje.