Inteligência artificial pode acabar com a preguiça da geração Nutella
Demóstenes Torres — O constituinte de 1988 produziu um texto polêmico para a parte final do inciso 33 do artigo 7º da Constituição, impedindo “qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz”. E, 10 anos depois, a emenda constitucional 20 modificou o texto para “a partir de 14 anos”. Já não é fácil convencer a moçada a acordar às 5 da manhã, arrumar a marmita, correr até o transporte público e passar pelo ponto no minuto adequado. Se a Carta Magna veta, aí não tem mais jeito.
Obra que resume bem os efeitos de ser criado no ócio é a novela “Renascer”, da TV Globo. José Inocêncio bancou a preguiça dos filhos, as despesas dos cursos superiores na capital e está com 2 inúteis dentro de casa: o médico José Augusto e o advogado José Bento.
O pai percebe a extensão de seu erro por sustentar os vagabundos, mas acorda a tempo e os coloca para pisar cacau, como peões e patrões sempre fizeram na fazenda Jequitibá-Rei, menos eles.
Desde jovem, tenho certeza de que o Brasil nunca vai ter revolução, seja de direita, esquerda, religiosa, étnica, por território, enfim, qualquer coisa que exija sacrifício. Há quem considere autoflagelação ir de ônibus a Aparecida ou a pé a Trindade, 2 centros de romaria. Imagina essa galera durante uma guerrilha, meses a fio no meio da mata, picada por trocentos insetos, dormindo em redes, bebendo água do sereno nas folhas… Quem biografou bem essa turma foi Belchior em “Dandy”:
“Um grande milionário socialista
De carrão chego mais rápido à revolução”.
Os ditadores Fidel Castro, de Cuba, e Daniel Ortega, da Nicarágua, recebiam os camaradas brasileiros sem os colocar em posição de combate. Nos 2 países da América Central, nossos conterrâneos resumiam suas atividades de derrubar governo a cortar cana. E no 1º calo já maldiziam o comunismo e planejavam a volta ao capitalismo.
As seguidas gerações Nutella podem estar no fim, pois a inteligência artificial e outras conquistas da tecnologia são implacáveis com gente à toa. Sem querer, querendo, estilo Chaves, o ChatGPT e outras inovações impõem uma dedicação fora do comum. Seu filho, que nunca se dedicou a coisa alguma, cumpre jornada dia e noite ao computador/celular. Ou seja, protegemos o sujeito do trabalho, que não lhe oferece perigo algum.
O filho de Henry Ford, Edsel, começou ainda criança a ter atividades na empresa da família e aos 12 anos já testava os carros. Antônio Ermírio de Moraes trabalhou de graça para o pai, mesmo depois de formado, até provar experiência. Os filhos de Bill Gates vão herdar, juntos, menos de 1% de sua fortuna.
Andrew Carnegie, uma das 5 pessoas mais ricas do mundo em todos os tempos, ensinou desde sempre à filha única, Margaret, o valor do trabalho e da generosidade. À moça sobrou o instituto de Andrew, que construiu 2.811 bibliotecas nos Estados Unidos.
O filho e xará de John Rockefeller, o nº 1 do planeta em dinheiro e propriedades nos últimos milênios, deixou o Jr. cursar faculdade de artes e se especializar em “O Capital”, de Karl Marx. Quando o rapaz precisou subir na vida, teve de se acertar na empresa da família e virou também ele um filantropo.
Alheia aos cases internacionais dos superbilionários, a modinha atual é sustentar os herdeiros com a conversa fiada de “entregar para eles tudo que não tive”. Nem é preciso ter coach ou ler obras de autoajuda para concluir pelo perigo desse raciocínio.
Afinal, você é o fruto de seus esforços desde cedo, das dificuldades enfrentadas, das portas que lhe bateram na cara, de cada “não” que entrou por um ouvido e não saiu pelo outro. Se ganhar tudo de mão beijada, o mais provável é atribuir valor exatamente nenhum às conquistas –que jamais foram deles, mas suas.
O que nos traz de volta à inovação. Alguém que batalha desde novinho vai ter sucesso com a sua startup por estar acostumado aos perrengues. Sabe o que é ter horário e cumpri-lo. Descobriu, na prática, os sinônimos de resultado.
Seus colegas colecionadores de êxito são os que estudam economia e administração, devoram livros, visitam museus, vão a festivais e memorizam poesia. E nos fins de semana ficam na igreja distribuindo cesta básica, vão dar banho nos pequeninos das creches, levam diversão aos centros de convivência dos idosos e advogam de graça para presos pobres. A alternativa a isso é o fracasso.
A lição que o fazendeiro de “Renascer” aplica nos 2 doutores chega em boa hora para os 3 Zés. Infelizmente, na vida real a vontade é imensa, porém a chance é pequena. O que mais se vê é marmanjo estourando o limite de crédito de pais e avós aposentados. É usuário de drogas se endividando com traficantes na certeza de que a família vai livrá-lo das consequências.
Não há notícia de algum agricultor, que trabalha desde antes de o sol nascer até o momento em que se põe, ter cometido essas atrocidades. Os métodos anacrônicos estão tipificados como crimes, inclusive a palmada, todavia, quando os desocupados chegam à idade de Zé Bento e Zé Augusto, não há método mais eficiente do que impingir-lhes o trabalho. Esse, sim, oferece perigo para quem sonha continuar como na música do Belchior, “de óculos escuros, vendo a vida e o mundo azul”.