Linha do tempo com os herdeiros do som
Marcio Fernandes – Corria meados de 1945. A Segunda Guerra Mundial estava no fim, e o País começou a olhar para o oeste, onde existia um Brasil-Central que era um sertão de fazer dó. Naquele ano em que renasceu o Século 20, o empresário, intelectual e escritor Waldomiro Bariani Ortêncio (1923-2023) deixou o Estado de São Paulo para instalar em Goiânia a primeira loja de discos, o Bazar Paulistinha. A empresa começou vendendo armarinhos, chegou a ter 15 lojas e foi histórica por ter tudo de música nas prateleiras. Bybritznews reuniu quatro filhos do fundador desta saga empresarial fantástica que criou por aqui o hábito saudável de se ouvir música. Herdeiros culturais do Bariani Ortêncio, minha amiga Nancy, Luiz, José Carlos e Cláudio, com a participação da Renata, traçam uma transversal da história de Goiânia em uma conversa longa essencialmente sobre música. Uai, divirta-se, pois os caras falam mais do que o homem da cobra e sabem tudo do assunto. (Na foto que abre a entrevista, Luiz, Nancy, Cláudio e José Carlos)
Marcio Fernandes – Aqui todo mundo ralou na Kombi do Bariani Ortêncio quando ele mascateava discos pelo Brasil-Central?
Cláudio Ortêncio – Não, isso foi bem antes da gente nascer. Meu pai ia para a Festa de Trindade vender discos, mas não era da nossa época. Inclusive, a Kombi era preta e vermelha, pois a gente era atleticano.
Luiz Ortêncio – Ele ia também para Brasília. Em 1954, ele foi para lá montar a loja no Núcleo Bandeirantes.
José Carlos Ortêncio – Que você (Luiz) fez o favor de pôr fogo (na loja), que era de madeira. Foi a primeira loja de discos de Brasília.
Luiz Ortêncio – Ele participou da inauguração de três capitais. Goiânia, Brasília e depois Palmas.
Marcio Fernandes – Como era a rotina da loja para quem hoje não sabe o que é uma loja de discos?
José Carlos Ortêncio – Primeiro, havia os representantes das gravadoras, que a gente chamava de viajantes. Os caras tinham um catálogo grosso e a gente escolhia os discos. Quero tantos dos Beatles e por aí a coisa acontecia. Fora os discos, tinha também acessórios, como agulhas.
Luiz Ortêncio – E a gente recebia também os artistas que vinham a Goiânia nas décadas de 1960 e 1970. A nossa loja era muito grande, por isso a denominação de maior do Brasil-Central. Para você ter uma ideia, a loja da Avenida Anhanguera tinha 24 cabines de som para os clientes. Ficava aberta das 8 da manhã até às 10 horas da noite.
Marcio Fernandes – Vocês chegaram a ter quantas lojas?
Luiz Ortêncio – No auge da empresa, nove. Mas se for contar as que fecharam, foram umas 15 lojas. Meu pai começou em 25 de julho de 1945 aqui em Goiânia, três meses antes do fim da Segunda Guerra na Europa. Ele começou na Avenida 24 de Outubro, em Campinas.
Marcio Fernandes – E quais foram os artistas que visitaram as lojas naquele tempo?
Cláudio Ortêncio – Meu pai contava uma história que o Orlando Silva, o cantor das multidões, estava dando um show no Teatro Goiânia e a turma agarrou ele na saída para tirar um souvenir. Acabou que ele entrou na Kombi só de cueca.
Luiz Ortêncio – Eu recebi na loja Francis Hime, Belchior, Emílio Santiago, Jerry Adriani, Jorge Ben, Elis Regina, Rolando Boldrin.
Nancy Ortêncio – Wanderley Cardoso…
José Carlos Ortêncio – O Jerry Adriani tomou um café na loja e a Suely (irmã) guardou a xícara.
Cláudio Ortêncio – Alceu Valença, Fagner…
José Carlos Ortêncio – Teve uma época que todo ingresso de show em Goiânia era a gente quem vendia.
Marcio Fernandes – Sobre o Alceu Valença, eu lembro de ter ido com um pessoal ao Hotel Umuarama depois do show “Espelho Cristalino”. E aí no quarto, um gaiato acendeu um baseado e o Alceu ficou muito puto e expulsou o cara.
José Carlos Ortêncio – Ele não gostava nem de droga nem de álcool. Meu pai contava que o Sérgio Reis esteve na loja e ele disse ao músico que ele era muito grande para cantar essa coisa Coração é Papel. E apresentou umas músicas sertanejas para ele. O Sérgio pegou aqui e levou para a RCA e os caras falaram que era uma boa ideia. Está aí até hoje.
Marcio Fernandes – Vocês se lembram de algum disco que imaginavam que não daria em nada e de repente estourou de vendas?
Luiz Ortêncio – O mais famoso foi o do Michael Jackson.
José Carlos Ortêncio – Os Mamonas Assassinas. Eu olhei a capa, fiz aquela cara e comprei três discos. Só que vendeu em um minuto. O disco estava estourado. Era um domingo e minha mulher (Renata) perguntou se eu tinha disco dos Mamonas Assassinas na loja. Eu disse que a banda estava estourando. Aí ela respondeu que havia morrido todo mundo em um acidente aéreo. Na mesma hora, era uma coisa que eu tinha que fazer como empresário, liguei para o representante em Brasília e encomendei 3 mil CD´s. Ele falou, olha acabei de vender 20 mil.
Cláudio Ortêncio – O Michael Jackson já chegou estourando com Thriller.
Luiz Ortêncio – Não é bem assim. Quando saiu Thriller, ele não era um vendedor de discos. A CBS, a gravadora, mandou 500 discos consignados e ficaram na loja muitos meses. Quando a gente estava pensando em devolver, ele começou a vender. Não sei nem a quantidade que eu vendi.
José Carlos Ortêncio – Aí já outra coisa, chamada MTV. O começo do disco era rádio. Não tinha televisão. A televisão começou na década de 1950, mas era muito caro. Foi se popularizar nos anos 1970.
Cláudio Ortêncio – No rádio era o jabazinho. Teve uma época que era 100% jabá. Só toca o que paga.
José Carlos Ortêncio – Quem inventou o clip? Beatles! Quem inventou o clip cinematográfico? Michael Jackson! Em Thriller ele gastou, vamos dizer, um milhão de dólares na produção.
Marcio Fernandes – Como era o serviço pesado do lançamento dos discos do Roberto Carlos?
Luiz Ortêncio – Ele só lançava disco no final de ano, antes do Natal. A procura era tanta que a gente já deixava embrulhado para presente em pilhas. Era só pagar e levar.
Cláudio Ortêncio – Teve uma época que vendia tanto que dava briga. Todos os lojistas de Goiânia amanheciam na porta da transportadora para pegar os discos do Roberto e levar logo para a loja. Em meia hora de venda ia muito disco. Só Roberto conseguia isso.
Luiz Ortêncio – Disco que vendia muito e que a gente não está falando era das novelas da Globo. Era impressionante.
José Carlos Ortêncio – Tudo tem uma fase. Depois vieram os padres. Com o Padre Marcelo aconteceu a mesma coisa. O representante da Polygram falou: eu vou mandar 3 mil. Eu disse: você tá louco, vai entupir minha loja. Ele insistiu que estavam apostando no cara. Vendemos tudo e ainda tivemos de pedir mais.
Cláudio Ortêncio – Tem uma coisa mais louca do que o padre. O abraçador, Pacini.
Marcio Fernandes – Como, assim? Pacini vendeu disco?
Cláudio Ortêncio – O cara não comprava um, comprava 13 discos de uma vez para difundir o Pacini.
José Carlos Ortêncio – Eram vendidos 2 mil discos em uma semana.
Marcio Fernandes – Nossa, eu achava o Pacini chatíssimo. Eu era repórter do Diário da Manhã e ele vivia lá. Ganhei um abraço do cara. Meio forçando amizade. Não aconteceu nada. Eu era ateu.
Cláudio Ortêncio – Não, ele continua chato. Não morreu.
Marcio Fernandes – Mas vocês também eram conhecidos por vender os caras que não vendiam disco, como Egberto Gismonti, Luiz Melodia, Jards Macalé.
José Carlos Ortêncio – Nossa loja era conhecida assim: “se não achasse no Bazar Paulistinha, não acharia em lugar nenhum”. Por exemplo, um disco do Hermeto Pascoal não vende, mas tem. Jards Macalé, Jorge Mautner.
Cláudio Ortêncio – Era uma política cultural nossa. Uma das primeiras pessoas a ligar para Belo Horizonte para comprar o disco do Sepultura foi a gente. Uma das maiores bandas do mundo e maior do Brasil, com certeza. Chamava-se Cogumelo Discos, a gente comprava da mãe deles. A gente sempre ia atrás de coisas diferentes.
José Carlos Ortêncio – E eles ofereciam para gente. Eles sabiam da fama da loja de ter tudo. A gente tinha uma seção de música clássica, que alguns fregueses compravam. A gente tinha ópera. Tinha seção de orquestra. Tudo separadinho.
Marcio Fernandes – Depois da Anistia de 1979, a música de protesto foi praticamente liberada. Vendia bem também?
José Carlos Ortêncio – Vendia muito. Todo disco do Chico Buarque a gente falava para os vendedores: vai chegar o disco do Chico e a Polícia Federal vem apreender tudo. Eles estiveram na loja umas quatro ou cinco vezes.
Luiz Ortêncio – Lembra da capa do Joia, com o Caetano, a mulher dele e o filho pelados? Eu trabalhava no estoque, aí chegou uma mulher e se identificou como Polícia Federal e queria ver os discos do Caetano Veloso. Ela pegou, tirou um formulário e disse que ia levar os discos. Depois eu teria de apresentar o formulário na gravadora para que fosse devolvido o dinheiro. Passou uma hora e chegaram uns 10 policiais vestidos de terno e perguntando onde estava a carteira da policial. Eu não sabia de carteira nenhuma. Ela era loira dos olhos azuis e eu barbudo.
Cláudio Ortêncio – O Caetano não foi quem ficou com a carteira, pois ele estava pelado.
Luiz Ortêncio – Quando eu pego o telefone para ligar para o meu pai, o cara me dá um tapa na cara, com telefone e tudo.
José Carlos Ortêncio – O falado tapa no pé da orelha.
Marcio Fernandes – Era chamado de telefone aquele tapa duplo que os policiais davam no pessoal em sessão de tortura.
Luiz Ortêncio – Eu caí e fiquei sem reação. Depois falei que eu tinha 17 anos, ele havia batido em um menor e que ele estava enrolado. Ainda fui intimado a comparecer na Polícia Federal para prestar depoimento sobre o sumiço da carteira. Um dia eu vou me encontrar com o Caetano e dizer que eu apanhei por causa dele.
José Carlos Ortêncio – Lembra do “Índia”, da Gal Costa? Eles falaram que a gente tinha de colocar uma tarja preta para cobrir as pernas. Antes eles vieram para apreender o “Para Não Dizer que Não Falei das Flores”, acho que em 1967.
Luiz Ortêncio – Eu tenho uma história sobre esse disco do Geraldo Vandré. Depois de muito tempo, meu tio Nestor estava mexendo no forro da loja e descobriu um monte de compacto escondido do “Para Não Dizer que Não Falei das Flores”. Era da RGE.
José Carlos Ortêncio – A gente vendia assim. O cara chegava e perguntava: vocês têm flores? Era raro e caro. E teve o “Calabar”, do Chico, que não chegou a sair e depois veio como “Chico Canta”.
Cláudio Ortêncio – Não, “Calabar” saiu. Era só orquestrado.
Marcio Fernandes – Na declamação do poema em “Fado Tropical” tinha um pique no disco para não sair a palavra sífilis. Os caras da censura eram paranóicos.
José Carlos Ortêncio – Lembra da Blitz? A última faixa foi censurada e a gravadora riscou o disco para não perder a produção. E vendeu demais.
Marcio Fernandes – E quando vocês perceberam que havia acabado o negócio da música física?
José Carlos Ortêncio – Quando minha mulher me ligou pedindo dinheiro.
Luiz Ortêncio – Nós abrimos em 25 de julho de 1945 e fechamos em 31 de maio de 2019. Foram 74 anos. Talvez em 2012 as pessoas já não precisavam mais ir à loja para comprar música. As vendas foram caindo. A gente vendia 90% do faturamento em discos. No final isso representava 30% e o restante eram instrumentos musicais e acessórios.
José Carlos Ortêncio – Estávamos cansados.
Marcio Fernandes – Vocês acham que essas plataformas digitais democratizaram o acesso à música?
Cláudio Ortêncio – Sem dúvida! Tem coisa mais linda do que estar lendo o jornal e ver algo sobre uma música, jogar no Spotify na hora? Não importa quem você é. Faça uma música e coloque lá.
José Carlos Ortêncio – Eu acho que ficou mais fácil, mas ficou mais pobre. Tem cara que é o seguinte: eu toco, canto, componho e produzo. Ah bicho, você é um gênio! Agora todo mundo é Stevie Wonder, Paul McCartney. Não dá!
Cláudio Ortêncio – A porcaria sempre teve. Só que hoje tem uma molecada que não precisa ir na gravadora produzir música.
José Carlos Ortêncio – Você conhece a história de Odair José? Ele nasceu em Morrinhos (GO) e fazia muito sucesso na zona. Aí veio para Goiânia e repetiu o sucesso no mesmo ambiente. Aí um cara falou que ele tinha de ir para o Rio de Janeiro. Ele dormia no banheiro do Aeroporto Santos Dumont e ia para a porta da Polygram na Barra. O Roberto Menescal era o produtor da gravadora. Ele ouviu “Para de Tomar a Pílula” e disse: “Isso aqui é bom demais”. Ele gravou um compacto e vendeu 100 mil cópias em uma semana. Aí ele já grava um LP. Na época era tanta gente boa…
Marcio Fernandes – A gente tem uma ideia de que toda inovação tecnológica é melhor. Mas o vinil voltou com tudo. O som do vinil é melhor mesmo ou é saudosismo daquela capa com muita arte gráfica e encarte com muita informação do disco?
Cláudio Ortêncio – O LP é quase um quadro. O CD é uma coisa meio sem vida.
José Carlos Ortêncio – Você pega o disco e tem lá o encarte com todas as informações do autor, dos músicos etc. Hoje o cara ouve “As Rosas Não Falam” e acha que é do Fagner ou da Beth Carvalho. Não sabe que é do Cartola. Todo filme quando o cara vai ouvir uma música é vinil. Tem gente que acha que é por causa do chiado da agulha no disco.
Renata Franco Ortêncio – Hoje não tem informação suficiente.
Cláudio Ortêncio – A gente pega o disco e tem um solo de gaita e pensa: Será que esse é um Maurício Einhorn da vida? Aí você vai atrás do cara e começa a aprender música. Então o LP é isso. Tem um quadro para você olhar. Tem um livro para você ler. Agora se é melhor, vai de cada um.
Marcio Fernandes – A televisão não substituiu o rádio e a internet incorporou o rádio. O que explica a imortalidade do rádio?
Cláudio Ortêncio – Eu acho que o rádio é direto. Ele conversa com você. É um amigo. Você está viajando, liga o rádio e ele conversa com você.
José Carlos Ortêncio – Quando a televisão chegou todo mundo disse que o rádio havia acabado. Hoje todo aparelho telefônico de alta tecnologia tem rádio.
Luiz Ortêncio – É igual ao cinema. O cinema acabou? Não! Mesmo com tantas opções de filmes na TV. Posso ficar em casa 24 horas por dia vendo filmes da melhor qualidade, mesmo assim toda semana eu vou ao cinema.
Marcio Fernandes – É verdade aquela história que o Nelson Motta conta de que eles não sabiam e não tinham equipamento adequado para gravar rock?
José Carlos Ortêncio – No primeiro Rock in Rio toda aparelhagem dos caras de fora, as bandas brasileiras compraram. A melhor coisa que você tinha aqui era uma Giannini, que era uma guitarrinha fraca e uma caixa amplificada. Os artistas brasileiros não podiam passar o som. Os engenheiros americanos falaram isso aqui é para o Rod Stewart. Você entra aí e toca de qualquer jeito.
Cláudio Ortêncio – Quase todas as bandas brasileiras quando fazem sucesso fazem a mixagem das músicas na Inglaterra, EUA. Só não vão por causa de dinheiro. É brutal a diferença de um disco produzido nos EUA e no Brasil décadas atrás. Agora tem muita tecnologia incorporada, pois o Brasil é um grande mercado. Tudo é em grande escala.
José Carlos Ortêncio – Você sabe que no começo ninguém queria vir ao Rock in Rio em 1985? Ir para o Rio de Janeiro e tocar em um pasto? Depois que o Iron Maiden assinou, eu vou também. Os empresários falavam esse cara, Roberto Medina, me ligou umas 200 vezes. O James Taylor nunca havia tocado para mais de 10 mil pessoas. No Rock in Rio ele tocou para 100 mil e todo mundo cantando as músicas dele. Ele pensou que aqui se falava inglês.
Marcio Fernandes – Em Goiânia teve Rick Wakeman…
Cláudio Ortêncio – Lembro demais. Lotou o Estádio Olímpico. Foi meu cunhado quem trouxe. Foi o show As Seis Esposas de Henrique VIII, em 1981.
Marcio Fernandes – Vocês produziram shows também?
Cláudio Ortêncio – Só produzimos dois. O da Tetê Spíndola e da Olivia Byington. É um arrependimento que tenho na vida. Se a gente tivesse produzido pelo menos um por semestre, teríamos conhecido todos os artistas.
José Carlos Ortêncio – Eu tinha contato com todos os empresários. Quando você trazia o artista, primeiramente te ligava o Juizado de Menores e pedia 30 ingressos. Depois o ECAD, eu quero dez. Aí a imprensa tantos. No Teatro Goiânia cabiam 800 pessoas. Não dava.
Marcio Fernandes – Eu trouxe a Olívia também. O piano estava meio desafinado, mas foi um bom show.
Cláudio Ortêncio – Pouca gente sabe, mas o João Nogueira foi parar lá em casa por conta da Nancy e do Marcio.
Nancy Ortêncio – Eu lembro do show, mas não de ter ido na sua casa.
Marcio Fernandes – Uai, Nancy, eu nem conhecia o Cláudio. Isso foi em 2000. O João Nogueira ficou quatro dias em Goiânia e depois do show ele me pediu para conhecer um pessoal bacana. Ele estava meio de saco cheio por conta de um jornalista. Você estava lá e sugeriu ir para a casa do Cláudio. Foi o maior barato. Conversamos até tarde da noite.
Marcio Fernandes – Vocês têm cara de terem batido muito ponto na porta do Teatro Goiânia. Foi uma coisa fantástica depois da reinauguração com a Margot Fonteyn.
José Carlos Ortêcio – Eu tinha o ingresso da Margot Fonteyn, mas não fui ao espetáculo.
Cláudio Ortêncio – Eu vi tudo. Elis Regina, Clara Nunes, só para ficar entre as melhores. Toda semana eu estava lá. Egberto Gismonti.
Marcio Fernandes – Do Egberto, eu me lembro do show “Carmo”. Sempre fui fascinado com cartaz. O dele era grande, azul. Não tenho. Uma pena.
José Carlos Ortêncio – Na época, teve um coquetel com Egberto e a Marluí Miranda no Hotel Umuarama. Mauro Senise. Só fera. Época do Irapuan (ex-governador de Goiás).
Cláudio Ortêncio – Para assistir aos Doces Bárbaros, a gente teve de ir a Brasília.
Marcio Fernandes – Mas aí foi um problema depois com o Caetano. Ele interrompeu um show em Goiânia e disse que nunca mais voltaria aqui.
Renata Franco Ortêncio – Foi o show Bicho, no Clube Jaó. É que ele botou a Banda Black Rio para tocar e aí o povo não queria ouvir isso. Ninguém sabia o que era a Banda Black Rio. Só que o goiano não aceitou isso e Caetano disse que nunca mais pisaria aqui.
Cláudio Ortêncio – Caetano é o único artista que faz isso. Ele deixa os músicos serem protagonistas do seu próprio show.
Marcio Fernandes – Por que a música goiana não aconteceu no País? Foi por falta de espaço, pois na época estava acontecendo o Clube da Esquina?
José Carlos Ortêncio – Primeiro, não existe música goiana.
Marcio Fernandes – Nos anos 1970 teve um pessoal bacana.
Cláudio Ortêncio – Qual o ritmo da música goiana você acha?
Marcio Fernandes – Uai, nossa cultura caipira. Clube da Esquina é um retrato da cultura rural e urbana de Minas Gerais nos mínimos detalhes.
José Carlos Ortêncio – A música goiana que todo mundo pensa é Clube da Esquina. É música mineira.
Cláudio Ortêncio – Eles tentaram fazer igual, mas tinha qualidade.
José Carlos Ortêncio – Clube da Esquina é música de Minas? Não. Milton Nascimento é jazz.
Nancy Ortêncio – Como se chama aquele médico?
Luiz Ortêncio – João Caetano.
Nancy Ortêncio – João Caetano. Ele é muito bom.
Cláudio Ortêncio – A tradição da música dos bares foi uma coisa maravilhosa.
José Carlos Ortêncio – Os caras tinham uma vida paralela com a música. O João Caetano é médico. O Gustavo Veiga, arquiteto. O mais assim é o Marcelo Barra. Ele foi o único que saiu daqui. O cara quer tentar carreira e ficar em Goiânia. Não tem jeito. O Lindomar Castilho foi meu pai quem lançou. Ele começou gravando Vicente Celestino. Aí ele falou para o produtor da Continental: mas tem umas músicas que eu fiz. Nem quis ouvir. Era aquela música “Você é Doida Demais”. O cara nem quis ouvir. Aí ele foi para a RCA e a música estourou.
Luiz Ortêncio – O Lindomar tinha estátua no México. Era o maior sucesso.
Marcio Fernandes – Caraca, estátua do Lindomar Castilho no México?
José Carlos Ortêncio – Vai sair um filme agora do Nelson Ned. Você não acredita. Ele cantou quatro vezes no Carnegie Hall em Nova York.
Luiz Ortêncio – O Lindomar era um grande cantor, tinha voz. Ele teve uns problemas por ter matado a mulher.
Renata Franco Ortêncio – Um detalhezinho.
Cláudio Ortêncio – Um detalhezinho. Matou só uma. A mentalidade era de que ele deveria ter umas 30.
Luiz Ortêncio – Antes do microfone elétrico, o cara tinha de ter voz. Francisco Alves, Orlando Silva e Vicente Celestino. A altura da voz mandava. Depois do microfone elétrico, mudou. O primeiro cara a gravar foi o Mário Reis, que é o pai da Bossa Nova.
José Carlos Ortêncio – Conta a história que meu pai levou o Lindomar para gravar e ele fez o disco em uma hora. Meu pai botou uma pinga numa garrafa de guaraná, pois não podia ter álcool no estúdio. Não errava nada.
Luiz Ortêncio – Teve muito folclore. A Simone só gravava pelada.
Nancy Ortêncio – Decerto ela tinha tesão na voz.
Cláudio Ortêncio – Cara, tudo isso é produção para sair na mídia. Você é jornalista e está cansado de saber.
Nancy Ortêncio – Falar que grava pelada vende mais.
Marcio Fernandes – Se eu dissesse que os Novos Baianos são a melhor banda do Brasil de todos os tempos causaria cisão na família?
Cláudio Ortêncio – São os Beatles brasileiro, no meu caso. Minha vida. A primeira vez que eu ouvi os Novos Baianos eu disse que isso foi feito para mim. Samba, rock, choro, futebol. A coisa que eu mais gosto no mundo, que é a música nordestina. Xote, baião, xaxado, tudo misturado.
José Carlos Ortêncio – Eu gosto pra caramba. Os Novos Baianos mudaram a música brasileira. O primeiro disco deles, “Ferro na Boneca”, é rock. Aí, depois do encontro que eles tiveram com o João Gilberto, mudou tudo. Eles ficaram horas e horas fumando maconha e ensaiando. Aí eles fizeram “Acabou Chorare”, que eu considero um dos 10 maiores discos da música feita no Brasil. Preta Pretinha era tocada na Rádio Difusora, rádio AM de padre.
Cláudio Ortêncio – E com uma letra do Galvão que de normal só tinha a sobrancelha.
Nancy Ortêncio – E vocês faziam muita festa de reggae.
José Carlos Ortêncio – Quem lançou o reggae em Goiânia fomos eu e o Cláudio.
Marcio Fernandes – Todo mundo tem um Beatle preferido. Qual é de vocês?
Cláudio Ortêncio – George Harrison.
Luiz Ortêncio – Cara, eu vou te falar uma coisa. Eu comecei com Paul McCartney, passei pelo John Lennon e hoje sou George Harrison.
Nancy Ortêncio – Eu gosto de tudo.
José Carlos Ortêncio – John Lennon.
Renata Franco Ortêncio – Paul McCartney e George Harrison.
José Carlos Ortêncio – Eu estava vendo o documentário “The Beatles: Get Back” e ali você percebe que o Paul era o cabeça do negócio. Ele sabia os arranjos e falava o tempo todo. Ele é muito grande.
Marcio Fernandes – O Paul era o intelectual dos caras. Foi numa livraria em Londres, que ele frequentava, que Lennon conheceu a Yoko Ono.
Cláudio Ortêncio – O jeito do Paul é mais comercial, que agrada rápido. O jeito do Harrison era diferente. Ele levou os caras para a Índia e apresentou o ácido mudou tudo.
José Ortêncio – Em 1967, o Correio Braziliense deu na capa fila enorme na porta do Bazar Paulistinha em Brasília para comprar o disco White Album.
Cláudio Ortêncio – Eu não aguento essa história de que não se faz mais coisa boa. Se você estiver vivo e ouvindo as coisas vai perceber que nunca parou.
Marcio Fernandes – Exatamente. E sempre teve essa coisa de música boa que não tem mercado e música ruim que vende milhões de discos.
José Carlos Ortêncio – A música dos anos 1970 é tão rica que até a música brega é boa. A letra é boa.
Marcio Fernandes – A música brega virou coisa de vanguarda, mas na época não era.
José Carlos Ortêncio – Você acha que a ditadura estimulou a criatividade?
Marcio Fernandes – Penso que sim. Em todos os setores da arte. Arte era busca por liberdade. Os caras não faziam música para ser censurados, mas aquilo era um estímulo para ver até onde eles podiam esticar a corda.
Foto: O Popular
Cláudio Ortêncio – A gente precisava sobreviver à ditadura e a turma começou a produzir absurdamente. Claro que foi um estímulo.
Luiz Ortêncio – Você acha que esses artistas produziriam tanta coisa boa sem drogas?
Marcio Fernandes – Nunca, mas sobreviveu quem saiu disso.
Cláudio Ortêncio – Artista sem droga, eu vou te falar quantos têm. Meio.
José Carlos Ortêncio – Até o Nelson Ned.
Cláudio Orêncio – Nelson Ned é piada. Ele cheirava até.
José Carlos Ortêncio – Keith Richards. É um sobrevivente.
Cláudio Ortêncio – Ele sempre teve dinheiro. Desde os 17 anos os Rolling Stones faziam sucesso. O Keith brincava ao dizer que meus fornecedores são os melhores.
Marcio Fernandes – Uai, o tempo está acabando e eu ainda queria falar mal da música sertaneja.
José Carlos Ortêncio – Qual música sertaneja?
Renata Franco Ortêncio – Sertanejo Universitário.
Marcio Fernandes – Sertanejo frango de granja.
José Carlos Ortêncio – Eu acho que eles deveriam se formar e fazer doutorado no inferno.
Cláudio Ortêncio – Depois a gente conversa mais.
Parabéns pela excelente entrevista de Marcinho com a família do saudoso amigo, o Mestre Bariani Ortêncio, baluarte da cultura goiana. Um depoimento histórico desse paulista que aos 15 anos adotou Goiás como sua terra. Tinha enorme admiração pela sua (his) enorme obra literária, pelo compositor, _gourmet_ e _gourmand raffiné_ , pelo apoiador das artes plásticas (primeiro a apoiar o grande Antonio Poteiro) e __last but not least_, pelo minerador. Muito conversava com ele quando eu, geólogo, dirigia o DNPM e CPRM entre 1967 a 1980 no Centro Oeste. Muito aprendi com ele. Foi nessa época que eu frequentava o Bazar Paulistinha, conhecendo os lançamentos de LPs que em primeira mão, chegavam a Goiânia. Guardo alguns LPs daquela época, inclusive o LP original “Joia” de Caetano, aqui referido por Luiz Ortêncio, com a foto de Caetano com o filho Moreno (que era lourinho) e Dedê Gadelha, então mulher dele. Na capa, desenho de Caetano; no verso, os três pelados. O LP foi recolhido pela censura, mas não o meu… Eu tinha, aproximadamente 800 LPs, doados quando me mudei da Urca para Ipanema no final dos anos 1980. Guardei somente os raros e os autografados, grande parte deles adquiridos no Bazar Paulistinha.
Parabéns, Britz e Marcio, por essa entrevista que me fez recordar os bons tempos dessa terra que, como Mestre Bariani, também adotei. A entrevista, como dizia a turma do Pasquim, “é lúcida, válida inserida no contexto”. Bjs
Que entrevista boa! Achei ótimo ver a opinião desses irmãos e cunhada sobre o mercado musical em Goiânia e sobre os artistas! Adorei!
Bom demais da conta!! Fantástica a condução da entrevista! Aprendi muito, relembrei e, claro, me diverti bastante, uai! Parabéns e abraços!
Que matéria fantástica! Que família incrível! Lembro me muito bem do nosso mestre Bariani. Marcinho, arrasou. Foi demais. Aprendi muito. 👏👏👏👏😘