segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Madonna mia

 

Poucas coisas eram mais divertidas do que ficar dependurado na segunda tábua da porteira na entrada da casa de “seo” Arlindo. Com um pé empurrava até abrir ao máximo e deixava-a voltar, de olhos fechados, sentindo o vento fresco no rosto. Era só o tempo dos cumprimentos dos adultos até que eu chegasse à sala da casa. Num bufê de aroeira antigo sempre havia uma panelinha esmaltada abarrotada de balas de coco feitas por dona Constância. Ninguém fazia melhor. Ao lado da penelinha de doces, algumas imagens de santos feitas em gesso resistiam ao tempo e às quedas e já tinham a pintura desbotada. Naquela época, início dos anos 1980, a casa ficava em uma chácara, na última rua da cidade. “Depois era o rio, a ponte e a estrada”, como costumavam dizer. Com o passar do tempo e a expansão urbana, virou uma casa grande, em área urbana, com quintal avantajado, onde eles cultivavam hortaliças e frutas de pequeno porte.

 

De pouco estudo, muita fé e benzedeira de mãos cheias, dona Constância não negava a ninguém uma reza com um ramo de guiné em punho. Quando iniciava o ritual, fazendo o sinal da cruz, começava a bocejar. Houve casos em que ela apagava durante a benzeção. “É quebranto demais, fio. Maloiado também”, justificava o sono depois de atirar no riacho que passava ao lado da horta o ramo murcho de guiné. Às segundas-feiras, rezava para “seo” Arlindo. “É pra limpar a alma e começar bem a semana”, explicava. Matilde, Rosinha, Arlete e Dimas só recebiam a reza uma vez ao mês. Dona Constância dizia que as crianças tinham a alma inocente e não pegavam olho gordo com facilidade. O conhecimento vinha da avó, que passou para a mãe, que deixou a ela como herança. Televisão ela tinha visto algumas vezes, na casa do compadre Austero e da comadre Nenzinha, que frequentavam sempre e passavam bons momentos durante as festas anuais dos Santos Reis. O rádio era antigo e pegava apenas quatro estações. Três delas de lugares que dona Constância nem imaginava onde ficava.

 

Era uma sexta-feira à tarde. Dona Constância coava café e soltava a fornada de biscoito de queijo e rosca e juntava a meninada toda da vizinhança. As crianças se sentavam lado a lado num pilar cuidadosamente encerado de cera vermelha que ficava na área. Cada um recebia um copo de leite com açúcar queimado e podia ir quantas vezes quisesse à mesa para garantir a quitanda. “Só um de cada vez”, alertava ela para não haver bagunça nem desperdício. Enquanto as crianças se esbaldavam, dona Constância ouviu palmas vindas da porteira. Um jovem senhor pedia ajuda. O carro tinha quebrado ali perto e havia duas crianças com sede. Chegaram mais cinco pessoas e se juntaram à ceia. Mais café e outra fornada de biscoitos. A mulher do jovem senhor tinha uma bolsa grande e usava um terço de prata no pescoço. Foi o sinal para a conversa disparar com a dona da casa. Antes da família visitante se despedir, dona Constância fez uma matula com biscoitos e roscas para as crianças e benzeu todos eles. Em agradecimento, a visita lhe deu o terço de prata e quatro revistas que tinha na bolsa. Dona Constância era só alegria.

 

A vida seguiu seu rumo até que chegamos aos anos 2020. Dona Constância não benzia mais. No mesmo canteiro de onde tirava os ramos de guiné, agora ela produzia hortaliças. Pés de couve-manteiga chegavam a mais de metro de altura com folhas gigantescas. E sempre tinha alguém pedindo muda. “Tenho a mão boa pra couve. As que eu planto duram mais de ano”, dizia orgulhosa. Raro era o dia em que não aparecia um cidadão pedindo uma mudinha de couve. E foi durante a pandemia que procurei dona Constância para relembrar do passado, da bala de coco e pedir umas mudas de couve. Teve biscoito com leite queimado também. Mas a surpresa foi descobrir que o bufê de aroeira antigo tinha sido substituído por um altar, durante a última reforma da casa. Com a morte de “seo” Arlindo, lá em 2010, dona Constância ficou depressiva e fraca e deixou de frequentar as novenas e missas na igreja da cidade. Passou a fazer suas orações em casa. Dimas, o filho mais novo, construiu um altar cheio de prateleiras, onde a benzedeira colocava as imagens de todos os santos que ganhava. Quando vi a portinha central do oratório entreaberta, percebi que havia uma imagem diferente.

 

Me aproximei enquanto ela ainda estava ajoelhada, de cabeça baixa, e consegui ver a foto emoldurada em madeira dourada, com uma vela de cada lado, e o terço prateado perdurado ao lado, no centro do oratório. A senhora percebeu a minha presença, fez o sinal da cruz e abriu um sorriso largo. “Tem bala de coco”, disse satisfeita ao me abraçar. Se virou para o altar, pegou o terço e pediu para que eu fechasse os olhos. Me benzeu. “Tá limpo, fio. Nem abri a boca!”, disse me puxando para a cozinha onde uma mesa cheia de quitandas – e balas de coco – me esperava. Leite queimado e café revezavam na caneca verde esmaltada. Enquanto isso, Matilde chegava do quintal com as mudas de couve enroladas num papel molhado. Antes de sair, fiz questão de voltar ao oratório com dona Constância e questioná-la sobre a imagem emoldurada. Era uma fotografia da cantora Madonna, em página inteira, cuidadosamente arrancada de uma das revistas que tinha ganhado naquele dia em que recebeu a visita, quando também ganhou o terço prateado. A foto era um frame do videoclipe de Madonna para a divulgação de Like a Prayer, de 1989. “Minha santa protetora”, me apresentou. E, juntando as mãos em sinal de oração, esclareceu: “Essa é a Madona, a mãe de Deus”, e fez o sinal da cruz.

 

Durante 30 anos, dona Constância rezou para uma fotografia da Madonna, a pop star, achando que fosse Madona, a mãe de Cristo, a virgem escolhida. “Ela é a minha mãezinha, a minha protetora”, beijou a ponta dos dedos e os levou até a foto. Eu quis esclarecer o equívoco, mas achei melhor deixar que a fé permanecesse. Aquela imagem representava para dona Constância tudo de bom que havia acontecido nesse tempo e, como ela mesma dizia, era a fortaleza para levar a vida até o fim. O que vale é a fé! Fiz uma oração com ela para Madonna, me despedi e voltei para casa.

 

Pouco mais de dois meses depois desta visita, dona Constância faleceu. As orações da família e dela própria para Madonna não foram suficientes para livrá-la da Covid-19. Sugeri a Dimas que a foto fosse enterrada com ela. Ele o fez.

 

História baseada em fatos e lugares reais. Os nomes dos personagens foram modificados para garantir suas privacidades.

 

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Este post foi escrito por: Rimene Amaral

As opiniões emitidas nos textos dos colaboradores não refletem necessariamente, a opinião da revista eletrônica.

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