segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Memórias de um peregrino da história

 

Marcio Fernandes –– Durante 54 anos, o professor de Direito Internacional Público, Joveny Sebastião Cândido de Oliveira, 86 anos, fez da sala de aula um espaço primoroso de difusão do conhecimento. Quem teve o privilégio de ser seu aluno sabe o valor que o Dr. Joveny sempre conferiu à verdade, ainda que incômoda. Poliglota e conhecedor do mundo, o consagrado professor nesta entrevista expõe concepções sobre temas que vão da política internacional ao Brasil contemporâneo. Sofisticado observador da história, Dr. Joveny é um jurista completo, de ilibada reputação, vasta qualificação intelectual e sólidas opiniões. O professor conta que fez três vezes o Caminho de Santiago de Compostela, com mochila nas costas e saco de dormir. Perguntado sobre o que o Caminho alterou no seu destino, o peregrino respondeu que se tornou poeta.

 

 

BBNewsEntrevista – Professor, mais de 40 anos atrás, na sala de aula da Faculdade de Direito da UFG, o senhor previu o colapso da União Soviética. Por que o comunismo ruiu, mas a ideologia de esquerda continua no poder na América Latina?

Joveny Cândido – Não é uma perguntada fácil de ser respondida. Na verdade, as pessoas gostam de ser enganadas, tapeadas. E adoram acreditar em milagres, em efeitos sem causa. Poucos são os sonhos que se realizam. O (Karl) Marx era uma pessoa genial. Não vou dizer que foi um gênio, há uma diferença que eu faço nisso. Acompanhado de (Friedrich) Engels, que era também um pensador notável, Marx reconheceu que existia um problema social. Inicialmente como sociólogo, ele imaginou o processo da humanidade desde os primórdios e principalmente a partir de um ponto vital que é o momento em que as profissões foram classificadas. Naturalmente, as pessoas passaram a classificar as profissões de acordo com suas necessidades e de uma forma arbitrária ao distinguir o que era considerado humilde e o que parecia ser nobre. Daí surgiram as classes sociais. Marx percebe tudo isso aí e fez uma elaboração muito interessante levantando os problemas, que na visão dele, compõem a sociedade injusta. Quando ocorre a Revolução Industrial essa divisão social injusta ficou ainda mais evidente. Os proprietários do capital e da tecnologia eram donos de praticamente todo processo econômico e dominavam quem tinha só a força de trabalho para oferecer. Marx passa a desenhar sociedades ideais nas quais esses processos não existiriam. Então ele começa a pensar em uma sociedade sem classes. Ele imagina que a propriedade privada é um mal e causa das injustiças. Daí Marx formula a ideia do Estado Social, que é o socialismo. Num momento posterior se tornará comunismo, que a última etapa do processo evolutivo da sociedade humana, onde o Estado vai desaparecer por ser desnecessário. Quando nós conversávamos nas nossas aulas, muitos anos atrás, sobre o colapso da União Soviética já se percebia claramente o fracasso daquela estrutura política, daquele Estado montado em cima de uma ideia falsa. O Estado como dono dos meios de produção, como imaginou Marx, não funciona porque o Estado é um mal administrador. O Estado não existe para, começar a conversa. O Estado é uma ficção. O Estado como conhecemos só vem existir dentro dos cânones, dos padrões de Mostesquieu, de Rosseau, de Diderot e, principalmente de John Locke. Ele só vem surgir na Revolução Americana de 1776 e depois na Revolução Francesa. É quando aparecem os Direitos Humanos. É quando se reconhece que a vida e a liberdade, que vem da natureza humana, não dependem do Estado nem de ninguém. Que a propriedade decorre da sua capacidade de trabalhar e produzir. Eu previ que o sistema soviético iria ruir, pois ao mesmo tempo em que eles faziam enormes investimentos em tecnologia de defesa e aeroespacial e se esqueciam de dar alimentação para o povo, de prover educação, moradia e deixando o povo na miséria.

 

 

BBNewsEntrevista – Na época da Guerra Fria, o senhor tinha entusiasmo com a ONU na mediação das tensões entre os Estados Unidos e a União Soviética. Olhando a guerra da Ucrânia, o senhor acredita que a ONU perdeu protagonismo político?

Joveny Cândido – A ONU perdeu protagonismo político muito antes da guerra na Ucrânia. A ONU nasceu de um erro do Congresso Americano de não ratificar o Tratado de Versalhes, em 1920, quando os Estados Unidos já eram a maior potência militar do planeta. Então, para corrigir o erro, eles perceberam claramente que precisavam protagonizar a criação de um outro órgão que mediasse os conflitos entre as nações por intermédio da política e da diplomacia. Muito bem, a ONU foi criada na cidade da Califórnia para ser o palco no qual deveriam se resolver todas as questões pertinentes às correlações mundiais. Mas não foi assim. De imediato houve uma crise. Todos são iguais, mas há alguns mais iguais do que os outros. Você pode ter cem países votando em uma direção, mas se houver o veto de um dos cinco integrantes do Conselho de Segurança a coisa não funciona. Então, Rússia, Estados Unidos, Inglaterra, França e China destruíram a ONU. Esse é o grande gargalo da Organização das Nações Unidas. Agora, muitas questões relevantes foram resolvidas na ONU. Os órgãos subsidiários da ONU administram muito bem setores como o comércio mundial e a saúde. Justamente onde não existe o tal do veto. A Namíbia vota igual a Inglaterra. Onde efetivamente cada Estado é um voto as coisas funcionam.

 

 

BBNewsEntrevista – O Brasil tem estatura e propósito para integrar o Conselho de Segurança da ONU com membro permanente?

Joveny Cândido – Para quê? Eu acho que não! Nós não somos potência nuclear. Aliás, nós não quisemos ser potência nuclear, embora pudéssemos sê-lo. Por que o Brasil precisa de uma bomba atômica? Para ser respeitado? Já dizia Júlio César: “Você quer paz se prepare para a guerra!”. Bom, se deixamos de ser potência nuclear deixamos de ser potência de primeira grandeza. Então, se vamos dar lugar no Conselho de Segurança da ONU as grandes potências não-nucleares como Alemanha e Japão, o Brasil poderiam entrar. Mas para quê? Se com cinco Estados com poder de veto a ONU não funciona imagina com dez? Vai ser só vaidade. Vaidade não paga cafezinho.

 

 

BBNewsEntrevista – O presidente Lula achou que iria ganhar o Prêmio Nobel da Paz ao se convidar para resolver o conflito entre Rússia e Ucrânia. O palpite infeliz foi solenemente ignorado por quem decide…

Joveny Cândido – Olha, as tentativas brasileiras de imiscuir-se em grandes problemas internacionais não funcionam. A nossa representação é muito fraca. Nós não temos mais aqueles grandes embaixadores com capacidade de diálogo e respeito universal. É difícil o Brasil ser levado a sério a se considerar os governos populistas que se estabeleceram desde o começo dos anos 2000. Eu tenho muitos contatos fora do Brasil. Já lecionei e estudei no exterior e sei o que as pessoas pensam do Brasil. Algumas sequer sabem o que é o Brasil. Pode parecer ignorância de geografia supor que a nossa capital é Buenos Aires. Mas como se trata de uma ignorância geral, trata-se também de ignorância política do que efetivamente nós somos. Duvido muito que o Lula teria condições de intermediar alguma conversação de paz. A guerra na Ucrânia ainda é alguma manifestação de Guerra Fria com outros objetivos. Historicamente a Rússia nasceu na Ucrânia. O primeiro nome da Rússia foi Grão Ducado de Kiev. Quando os santos Cirilo e Metódio saíram da Grécia e foram cristianizar os eslavos, criando inclusive o alfabeto cirílico, pois a língua deles ainda não era gráfica, não havia Moscou ou Leningrado. Mas a Rússia tem saudade daquele tempo, especialmente de quando a Ucrânia era a cesta de pão russa, um grande fornecedor de minérios além do parque industrial. A coisa mais importante, no entanto, é a Ucrânia ser o único lugar que a Rússia tem portos de águas quentes 360 dias por ano. A Rússia é um país engarrafado, não tem mar para sair seja ao norte, no Mar Ártico, seja no extremo leste, na Península de Kamtchatka, onde as águas são congeladas oito meses por ano. O Mar Báltico é outro gargalo. Só tem mar aberto no Mar Negro. A única saída é o Mar Negro, na Criméia.

 

 

BBNewsEntrevista – O senhor presenciou a decadência do Império Britânico, a ascensão dos EUA nos pós-Segunda Guerra e assistiu à queda do Muro de Berlim. Como o senhor avalia o papel da China no cenário global? É mesmo a próxima potência hegemônica em curto prazo?

Joveny Cândido – Eu precisava ter uma bola de cristal para responder esta pergunta, mas tudo indica que sim. O processo econômico chinês está evoluindo de uma maneira muito rápida e tem uma carga histórica única. A China se chamava Império do Meio, pois era o centro do mundo. Eles não tem pressa. Aguentaram todo tipo de colonização e tudo passou. Hoje as universidades chinesas são excelentes, justamente porque em passado recente a China enviou seus melhores quadros para estudar em Princeton, Harvard, Yale, MIT e Stanford etc. Então, além de matéria-prima, os Estados Unidos levaram para China muita tecnologia. A China é hoje a segunda potência mundial, enquanto a Rússia é hoje o que a Inglaterra foi no começo do século 20: uma potência de segunda ordem.

 

 

BBNewsEntrevista – O governo brasileiro tem antipatia do imperialismo americano, mas admiração simpática pelo regime chinês. O senhor imagina como seria o imperialismo global da China, já que democracia não é com eles?

Joveny Cândido – Aí seria o desenho de um novo Estado cujos parâmetros não estão em minha cabeça. Porque seria um sistema no qual grande parte da economia seria estatizada. A princípio não vejo como um mal, mas observa o Brasil. Eles arrebentaram com a Eletrobrás. Da Petrobrás roubaram praticamente tudo. Teve um indivíduo que devolveu 90 milhões de dólares roubados da estatal de petróleo. Agora, eu acho que o interesse do Brasil na China não é como você está dizendo. Antes do presidente Lula ir à China, viagem que não ocorreu, já havia por lá mais de 120 empresários brasileiros para fazer negócios.

 

 

BBNewsEntrevista – Em que medida o terrorismo islâmico alterou os valores da ordem mundial, especialmente o ambiente geográfico Ocidental?

Joveny Cândido – Meu Deus, eu temia essa pergunta! Sempre que a questão religiosa se imiscui na política a coisa não funciona. Quando você trata de religião, você trata de fé. Quando você trata de política, você trata de razão. A fé e razão são paralelas. Acho que você pode perfeitamente crer em dogmas não comprováveis. Eu tenho duas ou três formas de comprovar que Deus efetivamente existe. O que aconteceu no Oriente Médio? Por volta dos anos 600 aparece um profeta, Maomé, e consegue influenciar milhões de pessoas. Hoje você vai encontrar o Corão na Indonésia, maior país islâmico do mundo, que nem é de etnia árabe. É proibido religioso participar do processo político? Não! Só que ele não pode meter a religião no meio do negócio. Infelizmente foi o que os árabes fizeram. Então você vai encontrar leis corânicas mandando no País. Se você rouba terá a mão cortada. É lei. Está escrito. Os muçulmanos transformaram completamente a sua fé em uma alavanca política. Veja o caso da Terra Santa, Israel ou Palestina, por razões históricas, três grandes religiões, judaísmo, cristianismo e islamismo reivindicam a Palestina e a julgam como seu local sagrado. O conflito tem origem nas Cruzadas, que foram a semente do ódio. Na Primeira Guerra Mundial, sobretudo Inglaterra e França, tomam o Oriente Médio do Império Otomano e implantam um cristianismo à força, criando mais inimizade entre cristãos e muçulmanos. Aí começa a onda de imigrantes para Europa. Argelinos vão para França, marroquinos para a Espanha, líbios para Itália. Principalmente a Inglaterra tem um problema terrível, pois são milhões. Não há possibilidade de devolvê-los para seus países de origem, pois são cidadãos europeus. Não me parece um problema solúvel e meios militares não vão resolvê-lo. A solução deve ser política. Veja o caso da Itália, está invadida por milhões de africanos. A Bélgica, por exemplo, acabou com o Congo. O problema todo foi criado pelos próprios europeus e agora eles estão pagando o preço dos erros do passado. Honestamente, acho que a solução passaria por dar condição de bem estar social aos imigrantes.

 

 

BBNewsEntrevista – Eu lembro do senhor chegar à sala de aula, depositar pasta grande na mesa e falar das suas experiências internacionais como estudioso do Direito Internacional Público. Quantos países o senhor visitou e já são quantos passaportes?

Joveny Cândido – (O professor abre a gaveta de sua mesa e conta os passaportes). São quinze, mas dois que estão em casa. Um vencido, mas com o visto americano. Agora, quantos países eu não sei. É país para cachorro que eu já visitei.

 

 

BBNewsEntrevista – Professor, o senhor fez o Caminho de Santiago três vezes. O que o Caminho alterou no seu destino?

Joveny Cândido – As minhas três compostelanas (documento que certifica a realização do Caminho de Santiago) estão ali no armário, bem como a vieira e as credenciais. Eu fui um idiota. Fiz o meu primeiro Caminho em 2003, aos 66 anos, desde Saint-Jean-Pied-de-Port, França, 776 quilômetros, em 26 dias até Santiago de Compostela. Teve um dia que eu andei 54 quilômetros, Marcio.

 

 

BBNewsEntrevista – Meu Deus!

Joveny Cândido – 54 quilômetros! Ali, na Província de León (Espanha), em Villadangos Del Páramo. O terreno da Meseta é relativamente plano, mas não tem nada. É só lavoura, lavoura, lavoura em linha reta. Em 2010 eu voltei. E a última foi em 2017. Sempre no Caminho de Santiago Francês.

 

 

BBNewsEntrevista – E o senhor carregou mochila?

Joveny Cândido – Doze quilos. Aqui está a credencial da última caminhada, que fiz devagar, em 36 dias. Fiz devagar e curti efetivamente a viagem. Peguei o carimbo em todas as cidades.

 

 

BBNewsEntrevista – Mas em que o Caminho de Santiago mudou o seu destino?

Joveny Cândido – Marcio, aí eu vou ter de fazer uma confissão e chegar a um ponto muito íntimo da minha vida. Eu sempre procurei um contato com o transcendental e nunca encontrei. Já fui em casa mal-assombrada e a única coisa que me atacou foi pulga. Eu tinha 11 anos de idade quando dormi no Cemitério Santana em Campinas para ganhar uma aposta de que não existia fantasma. Eu li muitas obras sobre o Caminho de Santiago, inclusive o livro do Paulo Coelho, Diário de um Mago.

 

 

BBNewsEntrevista – Que na minha opinião não fez o Caminho de Santiago…

Joveny Cândido – Não fez nada. Mentira dele. (Risos). Ele escreve sobre o caminho uma série de coisas e um lugar eu guardo especial atenção. Chama-se Foncebadón, Espanha. Hoje tem hospedaria, restaurante, bar etc. Quando eu passei, este vilarejo estava em ruína. Paulo Coelho fala que em Fondebadón uns cães, que eram demônios, jogaram ele em uns buracos. Só que lá não tinha nada. Eu olhei as ruínas e falei: gente do céu foi aqui que o demônio pegou o Paulo Coelho. Tá na hora de eu topar com o dito cujo. Eu sempre procurei ele. Eu quero ver o transcendental, o que tem do outro lado. Eu tinha um pão, uma laranja e pouco de vinho em uma garrafinha de água. Meu cantil estava quase cheio. Deitei em meu saco de dormir, peguei meu rosário e comecei a rezar, que rezo quatro vezes, pois é da tradição jesuíta. Dormi a noite inteira e não teve capeta, não teve cachorro, não teve nada. Foi decepcionante. O que eu posso falar para você que alterou alguma coisa é que virei poeta.

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Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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