segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Memórias de uma estudante em tempo de ditadura

 

Maria Amélia Garcia de Alencar — Desde muito jovem, me apaixonei pelo que viria a ser minha principal atividade na vida profissional – fazer e ensinar História. Numa época em que essa disciplina era essencialmente factual, a lia como um romance.  Imagens dos livros didáticos ficaram eternamente gravadas na minha memória: um príncipe escandinavo morto, seu corpo caído na neve, sangue vermelho escorrendo, após uma batalha com os alemães… Lindo, não???

 

Foi só bem mais tarde, já terminado o ensino médio, que fui apresentada a uma História que se queria ciência, tendo por base teórica um marxismo ainda muito incipiente no Brasil. Quando me decidi pelo vestibular para a UFRJ, minhas leituras de História do Brasil já incluíam Caio Prado Jr, Celso Furtado, Nelson Werneck Sodré. No dia em que saiu o resultado do vestibular, na época muito concorrido e difícil (de cerca de 200 concorrentes, só 12 foram aprovados) chovia muito. Nada de resultados online… Tinha que ir até o centro da cidade, no prédio da antiga Faculdade Nacional de Filosofia – FNFi, para ver os resultados afixados em listas na parede. Qual não foi a minha alegria ao ver meu nome no topo da lista! Sem ter com quem dividir minha euforia, saí caminhando na chuva…Estamos no início de 1967, em plena ditadura civil-militar.

 

E começam os perrengues

 

Na Faculdade de História pontificava o catedrático de História Antiga e Medieval, professor Eremildo Vianna, também Diretor da Rádio Ministério da Educação, homem de confiança do novo regime. Eremildo, além de ser acusado de ter denunciado vários colegas no pós 64, também aterrorizava a nós, calouros, apontando para a nossa ignorância frente a seus conhecimentos adquiridos na Sorbonne. (Dizem que também inspirou o personagem do Elio Gaspari, Eremildo, o idiota).

 

Eu, ao mesmo tempo que cursava a faculdade, dava aulas particulares e fazia teatro universitário no TUCA – Teatro Universitário Carioca, fundado por inspiração do TUCA paulista, da PUC-SP, que havia sido vencedor no Festival Internacional de Teatro em Nancy, na França, com a peça Morte e Vida Severina. O TUCA Rio era uma ampliação na área cultural da AP – Ação Popular, braço político da Igreja Católica que fazia oposição ao regime militar. E o teatro era uma forma de levar nossa mensagem ao público, uma vez que a censura ainda não havia atingido níveis mais eficientes, o que aconteceria logo depois. Montamos um bumba-meu-boi de Joaquim Cardozo, um lindo texto musicado por Sérgio Ricardo, com direção de Amir Hadad. Hoje, passados mais de 50 anos, o grupo se apresenta num espetáculo chamado Re-acordar, em sessões especiais no Rio de Janeiro.

 

A sede da FNFi na década de 80

 

Mas, voltando à Faculdade de História, minha primeira dificuldade foi colar cartazes da peça nos muros da FNFi. Obtida a aprovação da direção, a dificuldade seguinte, pasmem!!!, foi com o Diretório Acadêmico, então em mãos de grupo político de esquerda, mas que fazia oposição à AP. Colados os cartazes, arrancados no dia seguinte, vida que segue.

 

Ainda no primeiro ano do curso, recebemos a notícia do desmembramento da antiga FNFi em Institutos.  Os cursos de Humanas – História, Ciências Sociais e Filosofia seriam reunidos no IFCS – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, que passaria a funcionar num belo casarão que fora residência de um prócere da Primeira República, no bairro de Botafogo. Na nossa leitura, toda essa manobra visava desmobilizar um bastião da resistência à ditadura, a antiga Faculdade Nacional de Filosofia. Resistimos o quanto pudemos, fazendo uma greve que durou meses, sob ameaça de reprovação pelo professor Eremildo, até termos que ceder, já quase encerrado o ano letivo.

 

Se nosso novo espaço se apresentava com uma belíssima casa na frente, ali só funcionava a administração do Instituto. Para nós, foi improvisado um barracão nos fundos, com as salas de aula separadas por um longo corredor no meio. O ambiente lembrava muito os campos de concentração nazistas, com suas lâmpadas nuas penduradas dos tetos. Aí vivi os dias mais difíceis da minha vida, com as polícias militares da Marinha, do Exército e da Aeronáutica entrando pela frente do prédio, fortemente armadas, em busca das lideranças estudantis e de professores suspeitos. Conseguimos descobrir uma saída para que nossos colegas escapassem, por uma trilha que dava no então Colégio Santa Úrsula. Mas a tensão era enorme. Uma tarde em que a polícia já entrou atirando, me vi escondida atrás de uma árvore para não ser atingida. O trauma foi tão grande que pensei em desistir do curso. Por um tempo, me recusei a estudar e os resultados logo apareceram com as notas baixas. Então pensei que, ou permanecia no curso e estudava ou desistia de vez. Felizmente, decidi permanecer.

 

E logo veio mais uma mudança, desta vez para um espaço definitivo, agora de volta ao centro da cidade. No Largo de São Francisco, ocupamos um prédio histórico – ali haviam funcionado várias instituições de ensino desde o Império – próximo ao Real Gabinete Português de Leitura, belíssima biblioteca onde podíamos realizar nossos estudos. Mas a nova casa reservava ainda piores experiências no campo político. A decretação do AI 5 – Ato Institucional n° 5 – fechou ainda mais o regime e as poucas brechas ainda abertas para protestos e oposição desapareceram. Ao AI 5 seguiu-se o Decreto Lei 477, voltado particularmente para estudantes e professores. Muitos colegas, então, tiveram que deixar a Universidade.

 

Foi assim que me formei no curso de História, sem festas ou qualquer comemoração. Depois de um tempo, fui buscar o diploma na Secretaria, onde colei grau. E teve início a luta por uma colocação como professora de História, num período em que a disciplina era vista como “perigosa” e em determinadas instituições o candidato tinha que apresentar um atestado de “bons antecedentes”. Mas isto já é outra história.

 

 

Este post foi escrito pela historiadora Maria Amélia Garcia de Alencar

 

 

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Este post foi escrito por: Britz Lopes

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