No tempo em que os porcos eram mais felizes
Não me lembro da data exata, mês ou mesmo ano. Foi no início dos anos 1990, nos idos de 1993 ou 1994. Eu, que havia me mudado para Goiás, fui passar um feriado na fazendinha que meu pai possuía no Município de Abadia dos Dourados, Minas Gerais. Não sei se era carnaval ou Semana Santa, mas isso não importa.
Sem que eu soubesse, mas não por coincidência, visto ser corriqueiro à época, era dia de matar capado. O escolhido era um piau preto de umas 11 arrobas, porco tipo banha, coisa rara hoje em dia. Senhor Ubaldino Vicente de Melo, que havia sido açougueiro antes de comprar seu pedaço de terra, foi o responsável pelo abate, feito por meio de certeira estocada no coração do animal, alcançado com a técnica do trespasse da lâmina pela pá dianteira do bicho, por debaixo do sovaco.
O porco que precisa estar imobilizado, enquanto seguro solta estridentes grunhidos até receber o golpe extremo, chegando seu sofrimento ao fim de maneira quase que instantânea. Isso quando por mãos de um bom matador, sendo que o bom aqui, logicamente, é aquele que tem expertise. Meu pai o era. Além de roceiro de nascimento, criado nas lides da roça, dentre elas a capação e o abate de suínos, aperfeiçoou sua técnica enquanto açougueiro, lá pelos anos 1960 e costumava dizer “Se grito resolvesse, porco não morria”.
Nessa época e nas anteriores, a gordura utilizada para a cocção de alimentos era quase que exclusivamente de origem animal, a banha de porco. Os óleos vegetais de soja, milho, embora as pessoas atualmente não se deem conta, são coisas de um tempo recente e digo isso sem fazer juízo da melhor opção, mas somente para contextualizar.
Meu pai, Ubaldino Vicente de Melo
Como a gordura era a banha de porco, era bastante comum castrar, engordar e abater os capados. O dia de abate nas fazendas era dia de festa, de fritar o toucinho, apurar a banha, comer o torresmo, fazer a linguiça das tripas do próprio animal, preparar as carnes que, após fritas, eram acondicionadas em latas de 10 ou 20 litros, cobertas com banha e guardadas na dispensa para o consumo que poderia ser amanhã ou daqui a meses. Era assim. Eram dias mais felizes, mais cheios de verdade.
Todo mundo que comia o porco sabia que ele teve que ser morto para virar alimento. Sabiam que aquele tanaco de carne ou pedaço de linguiça custou a vida do animal e muito trabalho para o homem. A modernidade destruiu esse conhecimento. Um pernil hoje na prateleira do supermercado só custa dinheiro. Ninguém mais sabe do grito do porco ou do pesar do abate, que pode até, atualmente, estar mais “humanizado”. Não sei. Mas, o fato é que ninguém se importa de onde veio a bisteca.
Uma outra questão é que, um porco da roça, nasce livre, passa uns tempos num mangueiro, que é, apesar dos muros, geralmente de pedras, um grande espaço para, só depois, ser castrado e confinado num chiqueiro que tem, no mínimo, vinte vezes a área de uma baia numa granja. E, embora, talvez não se dê conta, teve liberdade e dignidade animal, o que não existe numa granja. Ali só comida, antibióticos e imobilidade para maior conversão do trato dispensado.
Muitas das pessoas que simplesmente pegam o pernil no freezer do supermercado, se assistissem a cena, iriam repudiar o roceiro que, com canivete e sem qualquer anestesia, castrou seu leitão, curou a ferida com limão esquentado na chapa de ferro e depois de cevado o abateu com um chucho. Mas, na concepção natural de toda criação animal, que é ser livre e procriar, esses porcos de antigamente eram mais felizes e o roceiro mais gente.
Amei a história contada, eu sou um dos poucos privilegiados que viveu toda essa narrativa, obrigado meu irmão.
Obrigado!
Sensacional o texto do Marcelão. Ótima história que resgata a dignidade do porco piau, alma da cultura caipira brasileira. Marcio Fernandes.
Obrigado Márcio!