terça-feira, 3 de dezembro de 2024

O coração fraturado ouve A Deusa da Minha Rua

 

Marcio Fernandes – Imagina a cena de um homem praticamente cego, 87 anos, magro e ainda espigado, sentado no sofá de suspensório sem camisa? No átrio da casa mais antiga de Goiânia, com a luz das 10 horas entrando por janelas de 140 anos, ele olha meio perdido para a TV de 52 polegadas e fratura o coração de saudade ao ouvir “A Deusa da Minha Rua” na voz de Sílvio Caldas.

 

Eu cheguei na parte mais machucada da letra. “Na rua uma poça d’água, espelho da minha mágoa, transporta o céu para o chão”. Acho que meu pai fez um grande trabalho ao me proteger desde criança do atraso estrutural do Brasil ao sempre ouvir música de alta qualidade. Literatura também. A gente era meio infeliz, mas tinha biblioteca em casa.

 

E tinha sala de som. Morro de saudade das caixas Polyvox em jacarandá que davam vida à agulha Shure do toca-disco Garrard. Apesar de ser antiamericano e admirador de Stalin, meu pai assinava Seleções, uma revista de cultura geral super americana. Ele tinha a severidade suave de se recolher aos domingos neste lugar do som reservado para ler por algumas horas os autores europeus e ouvir Chopin.

 

A música acontecia sempre por lá. De dois em dois anos alguma coisa do equipamento era renovado na época de natal na Radelgo, loja famosa que havia perto do Jockey Clube. Me lembro de um gravador de fita cassete Kenwood grande e muito bom que fez toda diferença naquele lance de editar sua própria fita com sistema Dolby.

 

O bicho pegava com mistura de Tom Jobim e Martinho da Vila quando os amigos ferroviários do meu pai iam beber whisky em casa. Como não havia muito o que fazer na Goiânia dos Anos 1970, antes do Teatro Goiânia ser reinaugurado, a programação dos caras vindos do Rio, Belo Horizonte, Recife, Salvador era fazer festa em casa.

 

 

A Rede Ferroviária Federal em Goiânia tinha um centro médico para os funcionários, não havia SUS na naquela época. Aos médicos, dentistas e enfermeiros se juntavam os engenheiros para festejar a vida boa até tarde da noite ouvindo Nelson Gonçalves e Elizeth Cardoso. Iam no mais profundo sentido da poesia do Vinicius de Moraes e admiravam Paulinho da Viola sob as risadas mais gostosas da Estela, dentista que me amava, e do Dr. Belarmino, que todo mundo adorava. Claro que comentavam paixões ocultas ao rodar na radiola os grandes boleros.

 

Eles achavam que o brasil ia dar certo, mesmo a 1,5 mil quilômetros do mar. O pessoal do Rio de Janeiro era o mais saudoso de viver no ambiente inóspito do Cerrado. Eu pirava com o nome Belo Horizonte cheio das montanhas que Seu Alexandre descrevia. Dona Ester era uma carioca tão delicada que eu imaginava cair da bicicleta e quebrar o braço só pra ser socorrido pela mulher que tinha a pele mais linda de todos os trens que passavam pela estação.

 

 

A mensagem do sistema era “Brasil ame ou deixe-o”. Só que lá em casa, aquele bando de ferroviários, na faixa dos 35 anos, só queria acender um cigarro, beber alguma coisa da Escócia, ouvir Noel Rosa e viver a prosperidade do Milagre Brasileiro. Falavam muito de política e às vezes ridicularizavam os milicos. Parte concordava da pusilanimidade de Jango de não resistir ao golpe militar. Uns elogiavam a Transamazônica, outros reclamavam da censura. Sabiam da tortura. Definitivamente, não havia ódio ideológico. Eles tiveram a coragem de mover uma ação judicial contra o Regime Militar patrocinada por um advogado negro, Dr. Moacyr de Souza, que tramitou por 40 anos.

 

Era um grupo de amigos que se amava e combinava de ir ao espetáculo “Uma Noite em Buenos Aires”. Usava smoking no réveillon. Adorava as músicas do Noel e elegiam sempre Nara Leão a mulher mais linda da Bossa Nova. Foi um tempo muito bom da minha vida pois havia trem de passageiro saindo na manhã escura de Goiânia em direção a Minas. Tenho até hoje o aroma de arroz, feijão, carne ensopada e macarrão no vagão-restaurante do trem. Essa saudade é nada perto do que sente o homem de suspensório e coração fraturado ao ouvir Sílvio Caldas na sala vazia que não dá para nenhuma rua.

 

Marcio Fernandes é jornalista

Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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