quinta-feira, 21 de novembro de 2024

O desapego e o ciúme das coisas

 

Tive de mandar um zap para a minha amiga Renata Santos para conseguir um número de telefone que estava na surrada agendinha preta de papel – brinde de fim de ano do século passado da grife homônima da Raquel Pires, uma querida –, que relutei em jogar fora, até que derramei vinho nela. Maldito desapego! Deveria ter colocado no sol, separando as folha de tempo em tempo para que não grudassem. Mas fui seguir a história do menos é mais; a energia tem de circular etc. Vira e mexe estou eu precisando de um contato dela.

Uma coisa puxou a outra e ela me revelou a dificuldade de desapegar. Tem coleção de etiquetas das maravilhosas calças Fiorucci – aquelas que moldavam o corpo melhor que bisturi. Daí, acabei confessando acontecimentos que têm me perturbado ultimamente. Parênteses aqui – já fui muito acumuladora; hoje nem tanto, mas tenho ciúmes de faltar a respiração de certos objetos banais, como uma sacola de TNT para carregar vinhos que ganhei numa loja em Nova York, por exemplo.

Tenho recebido ultimamente algumas fotos antigas de viagens, encontros e festas com amigas. Dou um zoom para me lembrar da roupa e entro em pânico: por que será que passei pra frente essa saia de um Dress for Less de Orlando? E essa blusa psicodélica! Nunca vou encontrar outra parecida. Tanta coisa no meu armário que daria em resgate… Mas nem ideia de onde foram parar. É esquecer e pensar que foi bom para a “energia”. Então tá. Arrependimento para a eternidade.

Minha casa é entulhada de copos, bibelôs e toda a sorte de objetos de bar, peças de feiras de antiguidades e muita, mas muita lata velha (velha não, vintage!) mesmo: de pastilha, café, chocolate, sardinha, páprica, charuto… Quanta paixão envolvida! Dessas não tenho estrutura emocional para me desfazer. Sobre os copos, garimpados no mundo: incorporei a zen e coloquei alguns no uso. Quando o primeiro quebrou, quis cortar os pulsos com os cacos. Voltei todos para a prateleira. De lá não saem mais.

Os copos ficam onde estão: longe do alcance dos notívagos da bebida

 

Tempos atrás, fui ao aniversário de minha tia Izaura, forte e feliz no auge de seus 95 anos – já foi casada com cigano, então a festa dura três dias – e lá estavam todas as primas que herdaram a maioria dos meus sapatos num passado recente. Marluce é a mais bonita delas. Loira natural, pele de pêssego recém-colhido, sorriso de europeia bem resolvida (deve ter aprendido em Luxemburgo, onde morou). Veio me dar aquele abraço de muitos anos longe. Um espasmo súbito no estômago quase me fez curvar quando olhei para os pés dela.

Parágrafo para os pés de Marluce. Pequenos, 35 exatos. Calcanhar que parece queixo de tão liso e bem moldado. Depois, o arco plantar que lembra uma cintura pronunciada por um espartilho. O peito (do pé) exibe veias sutis e ossinhos salientes na medida certa. As unhas, de beleza Davinciana, explicação melhor não há – com direito a simetria entre o direito e o esquerdo. O que sustentava a formosura era uma ex-minha sandália.

Por causa da “Dolce & Gabbana”, agora de Marluce, esta fica

 

Essa foi de uma loja da José Paulino, em São Paulo. Sempre compro na liquidação, além de mais barato, o que eu gosto fica mesmo no monte das sobras, poucos seguram a produção. Entendam o que é a perfeição travestida de simplicidade: tamancos de altura confortável com base encapada de um veludo barato com estampa de oncinha e duas tiras de largura média de veludo vermelho. Nos pés de Marluce, um Dolce & Gabbana legítimo. Fiquei muda até o fim da festa e não bebi uma gota. Mas voltei pra casa com ressaca de sofrimento.

Apesar das escolhas erradas, devo continuar praticando a árdua tarefa do desapego – de leve, sem promessas e comprometimentos. Só tem uma única peça que jamais sairá do meu guarda-roupa: uma bata estampada que usei no último sábado de vida do meu pai. Ele havia saído da anestesia de um exame delicado, no Neurológico, e, ainda na maca, em direção ao quarto, me olhou e disse: “Essa blusa linda era só pra me ver minha querida”? Também não me desapego nunca dessa lembrança.

A bata que meu pai gostou: nem uso para não “gastar”

 

 

 

 

Este post foi escrito por: Britz Lopes

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