quinta-feira, 21 de novembro de 2024

O dia em que o karaokê silenciou

 

Shirley mal conseguia abrir os olhos quando se deu conta de que precisava atender ao interfone. Tocava insistentemente fazia mais de dez minutos. A noite tinha começado logo após o fim do expediente do dia anterior, numa aventura desregrada por, pelo menos, oito bares. A maioria de procedência duvidosa. As outras, de procedência sabida, porém ignorada. Tinha tabaco também. “Não cansam o dedo de tocar essa joça?”, perguntava ela a si mesma quando escorria da cama para tentar manter-se de pé antes de rumar para a cozinha, de onde vinha o som estridente que tanto lhe perturbava.

 

Enquanto tentava se equilibrar no chão frio, sem a firmeza necessária por causa da meia-calça arrastão, fitava o espelho na porta do guarda-roupa aberta, mas não conseguia se lembrar de muita coisa. Cara toda borrada e cabelos bagunçados, ela se perguntava: “Como foi que cheguei em casa?”. Franziu a testa unindo as sobrancelhas na esperança de que o gosto que sentia na boca fosse temporário. Reparou numa mancha vermelha no travesseiro e teve um certo alívio quando se deu conta de que era o batom. Respirou fundo, coçou os olhos, deu um nó no cabelo, rumou para o corredor e foi acabar com aquela tormenta de barulho.

 

Quando passou pela sala, Shirley teve um lapso, um flash. Lembrou que a amiga Arleide – Machadão, na intimidade, por causa do sobrenome – tinha lhe entregado um copo longo, lotado até a tampa, com uma bebida colorida e um canudo preto. Se lembrava de ter tirado o canudo, passado a língua nele e virado o líquido como se fosse água. Enxergou dentro da bolsa entreaberta, jogada na mesa, uma carteira de cigarro amassada e uma caixa de fósforos. Teve ânsia. Se benzeu e acelerou o passo para tentar interromper mais um estridente toque do interfone. Na mesa também havia uma garrafa de água com gás, sem gás, pela metade. Despejou um gole na garganta para lubrificar a voz. Mas que voz? Shirley era só sussurros. “Bebida e karaokê não combinam”, disse ela tampando a garrafa vazia.

 

Arleide Machado tinha moral num karaokê no centro da cidade. Era meio enrolada com o segurança que selecionava a entrada. Depois de calibrar o teor etílico nos bares onde a ferveção acontecia, era pra lá que as duas seguiam. Faziam apostas pela pontuação do karaokê com os demais frequentadores e quase sempre ganhavam. O pagamento, claro, era uma dose, um shot, um chope… Por mais que estivessem ali para se divertir, elas eram a diversão dos competidores e da casa.

 

Orgulho que Gerson fazia questão de deixar claro, sorrindo escancarado para mostrar o dente de ouro 18 quilates do lado esquerdo superior: “Canta demais, meu curió”, dizia com voz grave, se referindo a Arleide. O segurança tinha estilo rústico, casado e trabalhava de porteiro num prédio de grã-finos, mas tinhas os fins de semana livres, quando aproveitava para ganhar um extra como segurança de boate. No karaokê era conhecido como São Pedro, o manda-chuva da entrada, o dono da lista vip e o lesco-lesco de Arleide. Não dispensava um palito no canto da boca, que mascava a noite toda.

 

O interfone parecia tocar mais alto quando Shirley, enfim, chegou à cozinha. A voz não saiu, mas com o sussurro conseguiu se fazer ouvir: “Quem é?”. Do outro lado, em meio ao barulho de uma moto que passava na rua, Edinalva Biga, a colega de serviço que vendia lingeries e maquiagem por catálogos nas salas da repartição, foi direta e enfática. “Shirley, a Arleide morreu! Caiu bêbada ao sair do karaokê e bateu a cabeça no meio-fio”. Outro flash a fez lembrar quando Gerson a colocou num táxi e pediu ao motorista que a levasse para casa, tranquilizando-a: “Depois eu levo a Arleide”.

 

Enquanto o Sonrisal chiava derretendo no meio copo d’água, um rebojo passou pela cabeça de Shirley e as lágrimas escorreram como cachoeira borrando ainda mais o seu rosto. Depois do antiácido, uma caneca de café forte e uma parada na janela, muda, por mais de 30 minutos, com o olhar perdido, Shirley tomou um banho morno, se perfumou – não dava para entender como ela conseguia usar perfume naquela situação, seja pela ressaca, seja pela notícia. Mas costumava dizer que era a marca registrada dela, uma espécie de demarcação de território “como fazem os animais selvagens”. E todos sabiam disso, já que abraçá-la, em qualquer circunstância, era ter a certeza de se impregnar com o cheiro dela. Só banho pra tirar.

 

Com óculos escuros que escondiam metade do rosto, Shirley chegou ao cemitério como quem chega a um evento. Procurou a sala de velório e teve uma breve crise de riso quando descobriu, na plaquinha afixada na entrada, que Arleide tinha nome composto: Arleide Jorge Cintra Machado – sala 8. “Jorge?!” E se lembrou de uma viagem que fizeram para o interior de São Paulo, quando ela própria se enrabichou com Jorjão, motorista do ônibus que as conduziu até Araraquara. “Foi por isso que ela riu quando Jorjão se apresentou”. Puxou o fôlego, adentrou a sala, mirou o rumo do esquife. Percebeu que Gerson permanecia de pé, discreto, cabisbaixo no canto da sala. Parou bem em frente ao corpo, tirou os óculos, olhou fixamente, reparou um grande hematoma no lado esquerdo do rosto de Arleide. Puxou o ar como se fosse gritar, ajeitou a bolsa no ombro esquerdo e estapeou a defunta como se a cara dela fosse um pandeiro.

 

Apenas um funcionário do cemitério teve coragem de chegar perto para tentar contê-la, mas Shirley já tinha desmanchado todo o penteado e a maquiagem de Arleide, feitos cuidadosamente pela funerária. “Sua égua!, quantas vezes já te falei pra não misturar bebida colorida com cerveja e vodca?”, gritou indignada. Sob olhares estupefatos, enxugou o nariz com o punho direito, ajeitou os cabelos, se escondeu atrásdos óculos escuros, deu de costas para o corpo, saiu da sala, acendeu um cigarro, encostou na parede e se debulhou num choro dos mais doloridos de que se teve notícia naquele dia, o dia em que o karaokê silenciou.

 

Crédito da ilustração: Daniel Borges

Este post foi escrito por: Rimene Amaral

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