sábado, 7 de setembro de 2024

O inferno pode não ser aqui, mas muitos já imigraram

 

Demóstenes Torres —  Caetano Veloso diz que “o Haiti é aqui”. Pelo visto, está superado–não o genial cantor e compositor baiano, mas o país a que se referiu, o não citado nominalmente no verso. Enquanto isso, o Barão Vermelho canta a letra de Maurício Barros e Flavio Marquesini sem a audiência se dar conta de que o grupo de rock supera Caetano nas previsões, no nível do desenho dos Simpsons:

O inferno é aqui
E não adianta nem tentar fugir
”.

 

Mas alguém muito maior acertou há ainda mais tempo: Dante Alighieri em “A divina comédia”. Na humana, completaria Belchior, nada é eterno. Dante é exceção, pois o que produziu o tornou imortal. A música do Barão está completando 30 anos, quase 700 a menos que “Inferno”, uma das 3 partes do clássico de Dante. As outras duas são “Paraíso” e “Purgatório”.

 

O portal de notícias envia a novidade da manhã, a absolvição de Sergio Moro numa das encrencas em que está metido. Parece que já vi essa do senador em algum lugar. Ah, sim, está ali o ex-juiz no Canto XV:

“Quando a consciência me não clama,

Sabei que, quando a sorte avessa esteja,

A todo o mal sou prestes, que ela trama”.

 

Não é exclusividade do Bananão, como o jornalista Ivan Lessa denominava a Terra de Santa Cruz. O dono da Rússia ameaça o Ocidente, mata sabe-se lá quantos na invadida Ucrânia e, diante de escândalos financeiros e políticos, salta direto do Canto VIII:

“Quantos reis, grandes na terrena vida,

Virão, quais cerdos, se atascar no lodo,

Fama de si deixando poluída”.

 

Estou usando uma tradução recente, 2020, de José Pedro Xavier Pinheiro, para a editora Principis, em tiragem vendida na Amazon por menos de R$ 5 reais cada volume, insuficientes para comprar uma coxinha sem refri. Na internet tem de graça, com diferentes versões e casas publicadoras. Enfim, acessível a todos os bolsos. Qualquer pessoa de bom gosto literário vai conferir a manchete sobre religiosos envolvidos com patifarias e identificar no mesmo Canto XV:

“Sabe, em suma, que clérigos havendo

Todos sido e letrados mui famosos

Se mancharam num só pecado horrendo”.

Os comparsas dos assassinos dos médicos num quiosque carioca os trucidaram:

“Mas olha o vale: o rio é não distante

De sangue, onde verás fervendo aquele

Que violência exerceu no semelhante”.

 

É no que dá voltar à comunidade sem conhecer a obra atual e contemporânea de Dante. Escapa da polícia, não do Canto XII, e vai sem escalas para o Vale do Flegetone, no 7º Círculo do inferno.

 

Outro lugar das trevas que deve estar lotado é o Lago Cocite, reservado aos traidores. O partido recebe bilhões de reais em emendas e cargos, na hora de retribuir vota contra os projetos do governo que o abriga. Pronto, mergulhou no sangue que desce do reino do Diabo sorvendo as lágrimas de condenados por crimes hediondos.

 

Quem conduz Dante é Virgílio, mas em nossa alegoria do Século XXI pode ser o poeta Gilberto Mendonça, garantia de que a viagem vai terminar no Paraíso.

 

A discussão nº 1 no Congresso Nacional e nas mídias, e quase zero na população que tem serviço a fazer, é da mudança de sexo. Mantenha a decisão, enfrente o preconceito, porque, caso se arrependa, deve virar comédia:

“Ao sexo seu tornou, quando encontrara,

Inda uma vez, travadas serpes duas

E outra vez com bordão os separara”.

As 11 estrelas da seleção brasileira de Dorival Júnior na Copa América empatam com a Costa Rica e se jogam no Canto XXII:

“Com dez demônios (que companhia bela!)

Partimo-nos, porém rezar com santo,

Urrar com lobos discrição revela”.

 

Quem deveria rezar com santo e prefere urrar com lobos são os institutos de pesquisa, que abastecem os mandatários com levantamentos apontando índices de aprovação próximos aos de Jesus Cristo, o único capaz de nos livrar das chamas, mas só com milagres para afastar os bajuladores:

“Adulação com simonia impura,

Hipócritas, falsários, feiticeiros,

Rufiães e outros dessa laia escura”.

 

É o Canto XI, que tem frases assegurando que a morte ou a dor conferem força. E diz que quem nega Deus, blasfema ou desdenha dos dons prepara ataque contra Ele. Se o seu dom for cantar, por exemplo, siga o que lhe foi ofertado, não desdenhe.

 

Leio “A divina comédia” desde que era encontrada preferencialmente em prosa e continuo com a dúvida típica da despertada pela machadiana Capitu, se Dante desceu mesmo às profundezas com Virgílio. Todavia, não importa, esteve na terra, é a mesma coisa, porque se o inferno não for aqui, ao menos lá é um lugar tão ruim que migrou gente demais para cá. Nem sei se estão arrependidos. São esses que a gente vê nas telas de variadas polegadas a exalar cheiro de enxofre e “apropinquar-se um corpo sem cabeça”.

 

Ih, me deem licença que está se apropinquando uma cabeça sem cérebro.

 

Ilustra: Detalhe do 9º Círculo do Inferno de Dante, na concepção de Sando Botticelli. (Reprodução)

 

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Este post foi escrito por: Demóstenes Torres

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