O olhar da historiadora que não pertence a esse mundo
Marcio Fernandes — Quase se aproximando dos 80 anos, como ela diz, a historiadora Maria Amélia Alencar se sente apavorada com essa conversa de inteligência artificial. Definitivamente, não é esse o mundo da intelectual diferenciada que dedicou 40 anos à sala de aula na difusão do conhecimento da história. Nesta entrevista à Bybritznews, Maria Amélia discute o atraso brasileiro, o revisionismo historiográfico, lança um belo olhar para os Grandes Descobrimentos e comenta do amor pela cultura caipira no universo da Paulistânia. Minha professora preferida de todos os tempos, Maria Amélia me recebeu em sua casa, em tarde que durou mais de três horas e quase dois litros de sucos de laranja, mamão e melancia em uma conversa deliciosamente junta e misturada.
Marcio Fernandes – Como historiadora e pagadora de impostos você está feliz com a democracia brasileira?
Maria Amélia Alencar – A pergunta é, no mínimo, capciosa. Primeiro, a nossa democracia é muito capenga ainda. O Brasil tem uma democracia recente que se abala com muita facilidade. Olha o que aconteceu no governo passado. Como é que uma tragédia como aquela acontece em um País que teve já um João Goulart, teve 64 depois, 21 anos de ditadura militar, teve o Fernando Henrique com a volta da dita democracia? Então, a gente tem uma democracia muito frágil e não dá para dizer que estamos contentes com ela. É a que nós temos e o que é possível no País hoje. Para estar feliz falta muito ainda. É preciso o aperfeiçoamento dos modelos político e econômico, porque a desigualdade social, a injustiça social, o Estado policialesco, tudo isso mexe com a felicidade da gente no dia a dia. Como cidadã, nem é como historiadora, eu não estou feliz com a democracia brasileira.
Marcio Fernandes – O que deu errado com a democracia, já que o Brasil não conseguiu superar o subdesenvolvimento, possui uma infraestrutura deplorável, com a qual não é possível reduzir a pobreza?
Maria Amélia Alencar – Agora por que, né Marcio? Pesando sobre tudo isso, eu tenho uma teoria de que as antigas colônias entraram muito atrasadas no processo. Tem muita gente que diz assim: olha, os Estados Unidos foram uma colônia também e são a maior potência do planeta e pá pá pá. Mesmo assim, eles pegaram uma estrutura de colonização muito diferente da Ibérica e criaram um país com características que permitiram um rápido desenvolvimento e uma rápida exploração. Rapidamente, eles deixaram de ser colônia e se transformaram em metrópole colonizadora, um colonialismo novo, claro; Então, não tem como comparar. Do México para baixo, nós perdemos o passo lá trás, criamos uma situação da qual não conseguimos sair, e ainda não foi encontrada uma fórmula para superar o atraso. Você vai em qualquer país latino-americano e encontra a mesma desgraça, a mesma miséria, a mesma corrupção, os mesmos políticos muito personalistas, para não ser grosseira. Então, o País não consegue sair desse círculo vicioso nunca.
Marcio Fernandes – Além de ter uma elite predatória que tem asco do brasileiro justamente por ser um povo pobre.
Maria Amélia Alencar – Quando eu falo dos políticos, de onde é que eles vêm? Desta elite aí. O País nunca sai disso. Você pensa que vai, que caminha um pouco e daqui a pouco cai na mesma coisa. A situação da miséria da maioria da população não se resolve.
Marcio Fernandes – Qual é a responsabilidade da geração atual com a dívida social da escravidão? Cola essa história de que eu nunca escravizei e não tenho nada com isso?
Maria Amélia Alencar – Eu acho que não. Eu acho que nós temos uma dívida sim porque foram milhares e milhares de africanos escravizados, que depois da Lei Áurea foram jogados ao léu sem nenhum apoio para sair dessa situação e as consequências estão aí. Dificilmente você vê uma pessoa negra em determinados ambientes até hoje. Ontem, estava vendo na TV uma discussão sobre uma mulher negra no STF, que o Lula não nomeou. Então os negros são excluídos em uma sociedade naturalmente excludente. Uma outra questão é como reparar isso. A questão das quotas raciais foi colocada como uma política para superar isso, mas eu nunca fui favorável a este caminho. Eu sou mais favorável a uma política para os pobres. Qualquer pessoa em determinado nível de pobreza deveria ter a possibilidade de com esforço, inteligência e capacidade superar a situação. A política é de quotas raciais. Primeiro acho muito difícil definir raça. Eu tenho uma bisavó que meu pai dizia que ela era mulata. Eu sei lá o que é uma mulata. Que cor ela tinha. A gradação de cor aí podia ser enorme. Eu sou branca? Fui criada como branca. Sou branca. Isso está muito mais na minha cabeça do que na minha pele ou no meu sangue. Então, para entrar na Universidade você se declara negro, pardo, sei lá qual a terminologia que eles usam, e depois vem uma comissão julgar se você é de fato negro ou parto como foi declarado. Eu acho isso tudo muito complicado e a grande exclusão que nós temos é de pobres. Aí eu seria fracamente favorável a uma política de inclusão dos pobres.
Marcio Fernandes – E aí vem muita gente dizendo que os negros e pardos não têm acesso ao saneamento quando na verdade são mais de 100 milhões de brasileiros sem essa infraestrutura básica. Como fazer corte racial em um problema que afeta metade da população? Não há uma distorção nisso?
Maria Amélia Alencar – Eu acho. Por isso que eu penso que a grande preocupação não deveria ser raça, que é muito complicado, e sim pobre. O cara comprovou que é pobre tem de ter todo o apoio do Estado.
Marcio Fernandes – Vamos falar sobre revisionismo histórico. Muda alguma coisa eu dizer hoje que os bandeirantes não usavam botas sete léguas nem eram barbudos, mas eram mamelucos descalços e imberbes? É sadio reescrever a obra do Monteiro Lobato por entender que tem conteúdo racista?
Maria Amélia Alencar – Marcio, primeiro vamos aos bandeirantes. Eles eram homens do seu tempo. Homens dos séculos 16 e 17. Estes séculos eram extremamente violentos. Como homens da sua época eles viviam essa violência. Não se podia esperar outra coisa. Então, você tem bandeirantes versus jesuítas. Os bandeirantes vinham aprisionar índios para levá-los como escravos para regiões que não podiam comprar escravos africanos, pois eram caros, como foi o caso de São Paulo. Já os jesuítas tinham também uma mão de obra indígena concentrada nas Missões e que enriquecia tremendamente a Companhia de Jesus. Era natural o conflito de interesses. Hoje você tem essas ações de destruir estátuas, como ocorreu com o Borba Gato em São Paulo, em nome dessa idealização dos indígenas. Gente, o indígena também era muito violento. A questão da guerra está na essência da cultura indígena. Era a guerra de uma tribo contra a outra constantemente.
Marcio Fernandes – E não havia coisa alguma de economia sustentável na cultura indígena. Eles exauriam os recursos naturais de determinado ambiente e mudavam de lugar.
Maria Amélia Alencar – Quando o grupo crescia e a terra ficava insuficiente, eles dividiam a tribo e formavam uma outra aldeia. A questão da violência estava ali também, intrínseca. Eu acho que as novas revisões historiográficas romantizam muita coisa. Elas aplicam conceitos em um anacronismo absoluto de hoje para estudar outras épocas. Nada a ver. Eu acho que derrubar estátua de bandeirante porque ele aprisionava índio, porque ele era muito malvado, é uma grande bobagem. Você tem de estudar, principalmente o século 17, como ele era. Não se justifica a revisão historiográfica que se faz hoje, mesmo em relação aos quilombos. Tem um historiador da Bahia que descobriu que Zumbi tinha escravos negros dentro do quilombo. Como um rei africano. Gente, vai estudar as sociedades africanas da época para entender o que eles tentaram reproduzir aqui. São romantizações que não fazem sentido do ponto de vista científico e acadêmico.
Marcio Fernandes – E sobre a sobre a revisão literária que é global? Monteiro Lobato era racista. Eça de Queirós de igual modo. Na Inglaterra até Shakespeare também passou a ser considerado racista.
Maria Amélia Alencar – É a mesma coisa, Marcio. É uma leitura de um autor que escreveu em um determinado momento. Quem era Monteiro Lobato, autor renomado da elite paulistana, que escrevia de acordo com os parâmetros da sua classe social e da sua época? Não poderia ser diferente. Ele foi um grande autor com estas características. Reescrever alguém é o fim do mundo. Eu não posso admitir em você pensar na releitura do que o cara fez. Se você quiser mostrar para as crianças que estão lendo Sítio do Pica Pau Amarelo que a vovó era assim, que a Anastácia era assim, para contextualizar para que ela entenda que era daquela forma e que hoje não é mais e tudo bem. Agora reescrever a obra é uma bobagem.
Marcio Fernandes – Os Grandes Descobrimentos não tiveram a importância histórica da Revolução Industrial ou da Inteligência Artificial de hoje?
Maria Amélia Alencar – Quando eu dava aula, e talvez você tenha ouvido isso de mim, eu dizia que os Grandes Descobrimentos foram a Nasa quando ela estava no auge da expansão espacial, nos Anos 1960 e 1970. Foi a descoberta de novos mundos e de mundos absolutamente desconhecidos do Europeu daquela época. Eu ficava pensando no Colombo chegando nas Antilhas e vendo uma floresta tropical. Coisa que o cara nunca tinha visto. Você conhece as florestas da Europa. São coníferas, árvores muito altas e verticais. Imagina uma coisa assim redonda, enorme, praticamente impenetrável. Eu acho que deve ter sido uma emoção inigualável. Da mesma forma, lê Marco Polo e as culturas que ele vai encontrando no Oriente. Gente, era uma coisa inimaginável. Então o mundo se abriu com os Grandes Descobrimentos e foi promovida a Revolução Comercial em função de um conhecimento novo. Agora, Marcio, inteligência artificial. Eu não sei o que vai ser isso. Já entra em uma seara que me amedronta. Eu fui em uma exposição no Museu do Amanhã no Rio de Janeiro sobre arte e tecnologia. Arte usando a tecnologia. Eu saí de lá me sentindo mal. Parece que eu não pertenço mais a esse mundo. Eu estou fora. Sou de uma outra época. Estou me aproximando dos 80 anos. Imagina o que eu já vivi? Para mim esse mundo que se vislumbra aí é um desconhecido que causa medo.
Marcio Fernandes – Por que a gente tem as melhores escolas de samba do mundo e não consegue ensinar português e matemática para as crianças?
Maria Amélia Alencar – Marcio, não falo da Europa, pois não conheço muito bem, mas nos Estados Unidos houve também uma degradação muito grande das escolas públicas. Nada comparado com o Brasil. Lá a escola pública é muito mais includente do que aqui, é realmente universal, mas há uma discriminação de grupos raciais e nacionais. Então há os hispânicos, os negros, os brancos dentro da escola. Agora, temos grande cultura musical no Brasil, e não é só escola de samba, que vem de várias tradições. E aí eu acho que a tradição africana pesa muito. A música é uma coisa mais instintiva e emocional, pelo menos a popular, não depende do rigor acadêmico. E aí nós nos saímos muito bem. Fazemos coisas maravilhosas. Já na música erudita a gente é mais ou menos. Eu gosto muito de Villa-Lobos. Agora, quando chega na hora do esforço intelectual, da disciplina, a coisa não vai por todas essas características que a gente já citou hoje, que são responsáveis pelo nosso subdesenvolvimento. Nosso nível de escolaridade só vai melhorar junto com a melhoria de todo ambiente social. Ou vai tudo junto ou não vai nada.
Marcio Fernandes – Como você observa essa expansão do ensino privado universitário, verdadeira fábrica de diplomas, em um negócio que praticamente não há risco empresarial, pois o cara monta a faculdade e o governo federal garante o cliente com o Fies? Pode, por exemplo, uma cidade do porte de Mineiros ter duas faculdades de Medicina?
Maria Amélia Alencar – Olha, primeiro a iniciativa privada encontrou um campo aberto para crescer, pois o Estado não deu conta de atender a demanda. Quando eu entrei na universidade apenas 1% da população brasileira tinha acesso ao ensino superior. As escolas do ensino básico, por serem muito ruins, não preparam esses meninos para entrar nas boas universidades, mas eles querem ir para universidade. Minha empregada doméstica é bacharel em Direito. O que ela faz com esse diploma hoje? Não serve para nada, ela continua empregada doméstica. Apesar da baixa qualidade, essas escolas promovem alguma melhoria nas pessoas? Sim! Alguma coisa elas aprendem. O português melhora, a escrita melhora, a comunicação melhora. Houve uma época em que eu percorri várias seccionais da Secretaria da Educação pelo interior de Goiás, discutindo os currículos de história com o grupo. Eu era muito contra essas faculdades, pois elas não tinham nem biblioteca, não tinham nada. Mas chegava lá, ao entrar em contato com esse pessoal, com os alunos, eu percebia que eles tinham uma ansiedade enorme por conhecimento. Isso fez eu mudar de opinião em relação a isso. Elas têm um papel de efervescência nesses lugares do interior. Agora, não há qualidade, elas não conseguem formar bons profissionais. Como você citou, quando se olha para a área médica o caso é muito mais grave. Não se pode comparar. O professor de história vai lidar com a educação de uma criança do primário até o fim do ensino médio. O médico vai lidar com a vida.
Marcio Fernandes – Por falar em interior, o que foi feito da Paulistânia, este imenso território que começa em São Paulo e atravessa Minas, Goiás, Mato Grosso. Ainda existe a essência da cultura caipira?
Maria Amélia Alencar – É, eu fiquei muito surpresa quando descobri nos anos 90 que ela ainda existia. Foi uma coisa muito curiosa, eu te falei que minha mãe é do interior de São Paulo, e eu estava lá quando a Simone Guimarães foi fazer um show em Santa Rosa e ela começa a cantar uma música sobre os avá-canoeiro do Fernando Brant. Eu estava procurando um tema para meu doutorado. Aí escutei aquilo e comecei a pensar. Gente, a cantora é paulista, o compositor é mineiro e a letra fala de uma nação indígena de Goiás. Tinha acabado de ser defendida aqui uma tese de mestrado da Dulce Pedroso. Foi daí que surgiu o tema do meu doutorado que é a música de compositores que tinham essa origem rural em toda essa região. Apesar do predomínio do sertanejo, que é uma coisa urbanoide e muito ruim, eu acho que ainda existe sim um substrato da Paulistânia, dessa cultura que os bandeirantes criaram.
Marcio Fernandes – Eu sei que historiador não faz previsão de acontecimentos, mas vou te provocar. Daqui a cem anos, o que historiadores vão dizer de nossa conduta predatória ao planeta?
Maria Amélia Alencar – Se existir o planeta daqui a cem anos! Pode ser que a gente o destrua antes disso. É muito difícil uma previsão, pois você não sabe para aonde as coisas vão caminhar daqui a dez, vinte ou cinquenta anos. Quando eu era menina, a gente imaginava o futuro como no desenho Os Jetsons, com os carros voadores. Não aconteceu isso. Ninguém previu um computador. Então, se a gente pensar com cabeça que tem hoje de crítica a tudo que se faz de destruição do meio ambiente, daqui a cem anos eles poderiam pensar que éramos loucos por nos autodestruir nessas condutas suicidas.
Marcio Fernandes – Uma história mal contada?
Maria Amélia Alencar – Já te falei. A história dos nossos índios. Poucos historiadores têm contado na realidade o que foi ou que é cultura indígena no Brasil. Ou você parte para a destruição e a violência ou parte para romantização do ser humano que não conhece a competição, tudo é colaboração, companheirismo e não é assim.
Marcio Fernandes – Como historiadora, qual a história que você não contou?
Maria Amélia Alencar – Oh, Marcio. Eu li um livro chamado Brava Gente sobre a imigração italiana no Estado de São Paulo. Foi um livro que eu gostei tanto de ler que gostaria muito de tê-lo escrito. Eu também gostaria muito de ter escrito sobre o movimento feminista.
Grande mulher parabéns pela entrevista Dra!
Obrigada, Leda!!
Excelente entrevista. Nota 10 para a entrevistada e nota 10 para o entrevistador. Como dizia no tempo do velho “O Paquim”: “é lúcido, válido e inserido no contexto !: Parabéns
Oi Gravatá, muito obrigada pelo comentário. Será que se lembra de mim, na Goiânia de antigamente?
Claro que me lembro. Abraçao para o Steve, geólogo da velha guarda. Bj
Parabéns pela excelente entrevista com a brilhante Maria Amélia q só nos agrega conhecimento com seu olhar objetivo e ao mesmo tempo empático!
Gostei de ler a entrevista ! Muito lúcida, clara e objetiva. Parabéns Maria Amélia por compartilhar aqui suas percepções sobre questões que afetam as demandas do nosso tempo presente.
Adorei ler a entrevista Maria Amélia. Lembrei muito de suas aulas, que eu gostava muito. Como pesquisadora da temática indígena, faria apenas algumas observações sobre esse tema tão complexo, sem retirá-los do seu contexto, passado e presente. Assim como é necessário relativizar a violência e a cultura dos bandeirantes, inserindo-as no seu tempo; o mesmo deve ocorrer em relação aos indígenas, certamente com mais atenção, por se tratar daqueles que tiveram seus territórios invadidos. Mas isso sem nenhum romantismo, claro!!!!
Adoreiiiiiiiii, incrível por compartilhar de algumas opiniões, como simples observadora do mundo!
Parabénssssss 👏👏👏👏👏👏👏👏