quinta-feira, 21 de novembro de 2024

O pernicioso Estado Infrator

 

Marcio Fernandes – Há pouco mais de uma década, o professor aposentado de Direito Administrativo, Nelson Figueiredo, 79 anos, lançou um livro que definiu perfeitamente a ineficiência das instituições brasileiras no conceito do Estado Infrator. Trata-se daquele paquiderme que cada vez mais se agiganta, com enorme voracidade tributária e refratário, por dolo ou omissão, no cumprimento das obrigações com a sociedade. Ou seja, no Brasil o Estado é o primeiro e mais contundente sonegador da observância das leis em todas as esferas de poder. Jurista respeitado no Brasil, com 27 anos de magistério superior, Nelson Figueiredo ainda é poeta que domina o sentimento da língua portuguesa com inconfundível estilo e articulista de grande envergadura intelectual. Nesta entrevista à Bybritznews, o Professor Nelson destaca que a governança no Brasil piorou muito desde que lançou o mencionado livro, especialmente pelo fato de que, de acordo com sua opinião, deveriam estar atrás das grades algumas pessoas que hoje administram o País.

 

 

Bybritznews – Em que consiste o Estado Infrator e quais os prejuízos que ele causa ao pagador de impostos?

 

Nelson Figueiredo – O livro O Estado Infrator focaliza as ilegalidades, as arbitrariedades, as mazelas da administração pública brasileira, que são perpetradas sempre em desfavor dos direitos do cidadão. Ou seja, são dois pesos e duas medidas. O Estado, que é gigantesco, exige muito das pessoas em matéria de tributação, de regulamentação das atividades profissionais etc, mas não cumpre suas obrigações em nenhum dos campos do direito. Não cumpre com o direito constitucional, o civil e principalmente o penal, em razão do estado calamitoso e promíscuo das prisões brasileiras. O Estado impõe as regras do direito, mas ele é o principal infrator de todo o ordenamento normativo exposto.

 

 

Bybritznews – O Estado é infrator em todos os poderes ou só no Executivo?

 

Nelson Figueiredo – Em todos os poderes. Podemos dizer que algum poder comete menos ilegalidade do que outro, mas a conduta de quebra da legalidade está em todas as expressões do Estado.

 

 

Bybritznews – Como o senhor explica a origem do Estado Infrator?

 

Nelson Figueiredo – A questão do mal funcionamento do Estado no Brasil é congênita. Vem do fato de que o Estado chegou primeiro do que a nação. Por conta do Bloqueio Continental de Napoleão, que redundou na vinda da família real para o Brasil, os portugueses trouxeram o Estado quando não havia uma nação devidamente construída. Antes, o próprio modelo de Capitania Hereditária atesta a tese. A nação, por outro lado, foi se constituindo aos poucos. Veja o modelo de colonização americano. O Estado surge em decorrência da exigência institucional uma nação consolidada. Mas esta não é a questão. A questão principal é que o Estado brasileiro se agigantou, tem uma voracidade fiscal incontrolável para se manter, e sempre alega falta de recursos para cumprir suas obrigações.

 

 

Bybritznews – O livro foi lançando há 13 anos. Mais de uma década depois, o senhor acredita que a conduta do Estado Infrator é a mesma?

 

Nelson Figueiredo – É doloroso constatar que de depois deste tempo a coisa piorou muito em termos da prática de ilegalidade. Esta imensa rede de corrupção que a Lava Jato apontou, e que agora tem as provas anuladas, é um atestado disso. Além do mal exemplo da conduta criminosa, contribui para a sensação de impunidade a anulação pelo STF de provas evidentes e incontestáveis dos fatos que sangraram a administração pública em bilhões de dólares. O Estado hoje é gerido por algumas pessoas que deveriam estar na cadeia. Essas quadrilhas que instituíram a corrupção no Brasil e deram a ela dimensão internacional são um indicativo que a situação piorou bastante por sermos administrados por algumas pessoas condenadas em duas instâncias por corrupção. Há um retrocesso histórico, ético e moral incomensurável.

 

 

Bybritznews – O Centrão, que faz todo governo refém, é uma obra do PMDB, quando foi criada a Nova República, em 1985. O senhor acredita que possa haver outra modalidade do exercício do poder que não seja o que se chama de presidencialismo de coalizão?

 

Nelson Figueiredo – Olha, desde minha juventude eu já acreditava que a gente deveria ser contra o niilismo, ser contra a descrença de que nada muda. É um erro pensar superdimensionando o lado negativo da vida institucional brasileira. Veja que nos escândalos do Mensalão e da Lava Jato, os maiores empresários brasileiros foram presos e cumpriram pena, bem como uma boa parte dos políticos que comandavam a corrupção endêmica no Brasil. Isto foi um fato novo e relevante na história do País. No entanto, esse retrocesso que ocorre agora foi profundamente desanimador. Não se pode acreditar que os centrões da vida vão eternamente dirigir a vida nacional. Em relação ao Centrão, no meu livro eu comento isso antes de este grupo ser assim chamado. No Brasil, o preenchimento dos cargos públicos não é feito pelo critério da competência, mas da confiança partidária, pessoal e preferencial. Não existe na Constituição o critério do preenchimento da função de confiança baseada na preferência, no vantajismo.

 

Bybritznews – Por que a democracia brasileira não conseguiu entregar o sistema da boa governança, apesar de todos os mandamentos legais disponíveis?

 

 

Nelson Figueiredo – A democracia ainda não aprendeu a conviver com as mudanças que se verificaram na sociedade nos campos econômico e de inovação tecnológica. Por outro lado, a sociedade, mesmo com o apelo das redes sociais, ainda não percebeu o quanto a boa governança é fundamental para a superação do subdesenvolvimento brasileiro. É claro, há exemplos de prefeituras e Estados, mas são exceções. A boa governança é a antítese do Estado Infrator e ela não se realiza, entre outras razões, pelo histórico e danoso pluripartidarismo, que motiva negativamente o presidencialismo de coalizão. A existência de dezenas de agremiações políticas desfigura a finalidade do partido e empobrece a atividade política. Era assim antes de 1964 e voltou a predominar após o Regime Militar.

 

 

Bybritznews – A pandemia trouxe o fato novo do Estado remoto. O senhor acredita que à medida que for evoluindo a tecnologia da informação a tendência é a diminuição do Estado?

 

Nelson Figueiredo – Não resta dúvida de que já ocorre um enxugamento da atividade presencial do Estado, especialmente no que se refere ao gigantismo burocrático. O mesmo ocorre em parte da atividade intelectual da iniciativa privada. A tendência é que o home office leve a uma mudança da relação da mão de obra com as empresas e com o próprio Estado. Em consequência vai haver uma diminuição do tamanho do Estado, não em razão de pressão política em relação à carga tributária, mas em virtude deste modelo de gestão imposto pela informatização. No entanto, vai demorar. O Estado continua sendo perdulário e ineficiente na capacidade de cumprir suas obrigações com o contribuinte. O Estado em todas as suas representações ainda vai, no Brasil, ser instalado em palácios suntuosos e edifícios magníficos, mas estas obras monumentais estão condenadas ao desperdício da inutilidade.

 

 

Bybritznews – Por que o Estado é tão eficiente para arrecadar e não consegue prover nem uma escola que alfabetize o estudante em habilidade básica de língua portuguesa e matemática?

 

Nelson Figueiredo – Olha, o Estado sempre baseou sua atuação por aquela lei de dois pesos, duas medidas. A lei que predomina no Estado é a de que faça o que eu mando, não veja o que eu faço. O Estado exige o cumprimento das obrigações do contribuinte prontamente, mas não comparece perante a sociedade com a mesma rigidez, com a mesma seriedade. Uma das poucas ilhas de eficiência do Estado reside na atividade arrecadadora. Quando observamos a realização da despesa, o nível de desempenho é frustrante em praticamente todos os setores. Isto vale tanto para obras feitas com uma engenharia tabajara quanto para a incapacidade de promover a educação básica. Desde o governo FHC, tem sido empreendido um esforço enorme para universalizar o acesso ao ensino básico, no entanto trata-se de uma escola que não educa. Veja o caso do saneamento. Já estamos quase no fim do primeiro quarto do Século 21 e o Brasil ainda tem índices de saneamento da Europa de 200 anos atrás. A eficiência em arrecadar o tributo e realizar a despesa deveria ser a mesma, pois se trata de um princípio fundamental da administração pública, que o Estado Infrator burla para desespero do pagador de impostos.

 

Foto: Marcio Fernandes

Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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2 comentários em "O pernicioso Estado Infrator"

  • Cristina Prado. disse:

    Brilhante entrevista.
    Verdadeira aula da nossa realidade política.
    Muito obrigada e parabéns aos dois, entrevistador e o entrevistado, Dr. Nelson Figueiredo.

  • Marcelo Melo Marcelo Melo disse:

    Muito boa a entrevista. Perfeita a percepção do entrevistado ao estabelecer a relação entre a ineficiência do Estado e o ilícito. Excelente!

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