segunda-feira, 16 de setembro de 2024

O precursor dos bares da vida

 

Marcio Fernandes  — Nos Anos 1970, Goiânia (GO) viveu momento de excepcional consumo do que havia de melhor da música brasileira. Era considerada Capital da MPB. Nos bares da cidade criou-se a cultura do som ao vivo com muita presença de artistas autorais. Os caras faziam sucesso danado com suas composições. Fernando Perillo foi um dos precursores deste estilo de entretenimento. Por boas duas décadas, na Praça Tamandaré, a música de bar contagiou uma geração de boêmios em casas como Siriu’s, Zero Bar, Boteco e Dom Quixote. A cidade mudou de hábito musical e de endereço. Não há mais o banquinho e o violão. No entanto, o precursor persiste. O artista é inconformado com o fato de Goiás não ter ímpeto para se projetar nacionalmente, confessa enorme respeito pelo sucesso da música sertaneja e acredita que os streamings da internet são danosos à saúde da música.

 

BBNewsEntrevista – Fernando, muito tempo de carreira, né?

Fernando Perillo – Eu comecei a carreira musical em Palmeiras de Goiás (GO) ainda adolescente. Fazia parte de um conjunto de baile. De lá para cá nunca deixei de ser músico. São mais de 12 discos e cem músicas gravadas. 95% são minhas com meus parceiros da vida toda. Eu considero isso a minha maior riqueza, que é o meu trabalho autoral. Modéstia à parte, eu tenho uma discografia muito bem feita. Tive o cuidado de realizar isso de maneira apurada para que fosse perene. E o maestro José Eduardo Morais foi fundamental. Ele produziu, no Rio de Janeiro, meus dois primeiros discos e isso serviu de parâmetro para toda minha realização musical.

 

BBNewsEntrevista – Fernando, você foi o precursor da música ao vivo na noite de Goiânia, correto?

Fernando Perillo – Sim. Eles falam da MPB nos Bares. Nós tínhamos um conjunto de baile, eu tocava baixo e fazia voz. Depois que o conjunto acabou, eu fiquei meio perdido e passei a fazer voz e violão na Tocata, uma boate aqui no Shopping Center Sul. Eu cantava lá com o Odilon Carlos, Bororó, Silvinho Barbosa, Marcos Fontenelle e Cesinha Canedo. Era um som da pesada. Eu aprendi a cantar música popular brasileira aí. Depois da Tocata, o Sirlon Franco, seresteiro, estava fazendo temporada no Swing, na década de 1970 chamado choparia. A MPB estava no auge. Ele me disse que tocava seresta e música sertaneja, mas o pessoal pedia MPB, coisa que eu fazia muito bem. Eu aceitei o convite e o bar estourou. Então essa foi a primeira experiência da música MPB nos bares abertos da cidade. Foi muito legal. Quem me substituiu lá foi o Gustavo Veiga. Aí eu vim para criar os Siriu’s aqui no Setor Oeste, que contagiou a cidade. Fiquei três anos lá e depois fui trabalhar no Zero Bar, que foi o apogeu da MPB nos Bares, isso já década de 1980. Eu dei o nome para os dois bares e atuei como produtor cultural, além de me apresentar.

 

 

“Claro que sinto falta do disco material.

O LP não era só a música. Envolvia arte gráfica, fotografia, texto.

O disco era esperado no conjunto da obra”

 

BBNewsEntrevista – Qual o motivo desta geração musical extraordinária nascida nos bares de Goiânia não ter conseguido projeção nacional? Você acha que os mineiros, liderados pelo Milton nascimento, foram uma barreira pois não havia espaço para música com temática semelhante?

Fernando Perillo – Não, não, não! Eu tenho uma teoria para isso. O Estado de Goiás tem uma dificuldade imensa para se promover e se destacar nacionalmente. Não só na atividade cultural, mas em todas as áreas da sociedade. Nós não temos nem um político com projeção nacional. Nenhum jogador na seleção brasileira. O Estado de Goiás não tem meios e não sabe se projetar nacionalmente. Em 300 anos de história tivemos um único homem na Academia Brasileira de Letras, o Bernardo Élis. Cora Coralina e Siron Franco, por exemplo, são exceção à regra.

 

BBNewsEntrevista – Por outro o lixo cultural da música sertaneja feita em Goiás vende horrores em São Paulo, no Rio, no Nordeste e até em Portugal?

Fernando Perillo – Nós temos também essa exceção aí, que é uma coisa mercadológica. Não é de hoje. No meio da Década de 1980, a indústria fonográfica lançou o Rock Brasil, que era só alegria. Uma coisa completamente diferente da MPB engajada com os problemas da Ditadura Militar. Logo em seguida veio o Axé. E era diversão também. Após o esgotamento desse modelo veio o Sertanejo Universitário. Na mesma linha. Agora há duplas sertanejas muito boas. Zezé de Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo, Bruno e Marrone. Eles são muito profissionais. Eu não invejo, mas são desmereço o sucesso deles. Ao contrário, tenho muito respeito. Há um mérito muito grande nisso.

 

BBNewsEntrevista – O banquinho e o violão estão definitivamente banidos da noite em Goiânia?

Engraçado isso, né? Eu prefiro uma música baixa quando vou a um bar. Dá pra a gente conversar. O banquinho e o violão é mais acolhedor. Mais harmonizado com o ambiente. Mas o público prefere aquela coisa do bar para dançar, som alto. Eu pessoalmente não gosto. A música boa sempre tem o lugar dela.

 

 

 

“Eu tive o privilégio de compor com parceiros muito bons,

além da direção musical dos meus dois primeiros discos

do maestro José Eduardo Morais”

 

BBNewsEntrevista – Você sente falta da música física dos tempos do LP? O disco era um conjunto não só de música, mas de arte gráfica, fotografia, texto. Havia os encartes etc.

Fernando Perillo – Exatamente como você está dizendo. Eu, como músico, observo que esses streamings, essas plataformas na internet, são extremamente danosas para a música. Quem fazia o papel dos streamings eram as gravadoras, que investiam na produção musical como um todo e pagavam para o lançamento do disco. Agora, quem tem de arcar com os custos da produção são os artistas. As plataformas apenas colocam os discos e as músicas lá, sem gastar nada. Os grandes artistas, inclusive, estão tendo muito prejuízo com isso. Nos Estados Unidos e na Europa eram os discos que sustentavam a produção dos shows. A renda saiu das mãos dos artistas e foi para as mãos de quem não tem não produz. Eu sinto muita falta da música física, como você disse, mas observo uma mudança. Nos últimos três anos, nos Estados Unidos, o objeto musical mais vendido foi o LP.

 

BBNewsEntrevista – Por que houve essa volta ao vinil? O som é melhor mesmo?

Fernando Perillo – É como livro físico. É muito mais prazeroso do que o e-book, que não pegou muito. O LP era uma obra de arte mesmo. O lançamento era esperado pelo conjunto da obra envolvida em uma produção de muita riqueza realizada pelas melhores cabeças. Tudo isso passou a não ser nada. Esse conceito de disco como uma obra, que começou com o Sgt. Pepper’s dos Beatles, deixou de existir. Agora, você vai lá e baixa uma única música. Em função desse dano financeiro, muitos artistas estão deixando de gravar. O lançamento de discos caiu vertiginosamente. Mas o LP está de volta e vai conviver com as outras mídias. Isso não é saudosismo não!

 

“A música de bar em Goiânia, iniciada nos Anos 1970,

promoveu um marco cultural na cidade. Uma geração de

músicos autorais foi consagrada na noite”

 

BBNewsEntrevista – Você acha que em função disso deve se discutir no Brasil novo marco regulatório para os Direitos Autorais?

Fernando Perillo – É. Este assunto que merece ser tratado pelos juristas. A legislação dos Direitos Autorais precisa ser atualizada. O Direito Autoral sempre respeitado lá fora e aqui é muito duvidoso. O artista que fez a obra, não importa onde foi divulgada, tem de ter de remunerado pelo seu trabalho.

 

BBNewsEntrevista – O músico se aposenta?

Fernando Perillo – A minha referência são esses caras, que estão fazendo uma coisa inédita, como os Rolling Stones, que aos 80 anos estão em pleno palco. Bob Dylan ganhando Nobel de Literatura. No ano passado tivemos a felicidade de comemorar os aniversários de Paulinho da Viola, do Gilberto Gil, do Caetano Veloso e do Milton Nascimento. Todos eles fizeram 80 anos em plena atividade. O Chico Buarque está em turnê vitoriosíssima. A medicina e as condições sanitárias permitem hoje longa vida. Como eu sou de uma família muito longeva, o meu plano é chegar aos 105 anos, idade que tinha minha Tia Comari, minha segunda mãe. Eu tô nessa aí!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

As opiniões emitidas nos textos dos colaboradores não refletem necessariamente, a opinião da revista eletrônica.

9 comentários em "O precursor dos bares da vida"

  • Avatar Fausto Noleto disse:

    Muito boa a entrevista e necessária, já que a memória do brasileiro em geral é muito duvidosa, superficial e descartável! Enobrecer e “relembrar “ a trajetória e história dos verdadeiros artistas de Goiás para todas as gerações, será sempre didático é obrigatório! Parabéns!!!🎶🎸🎶

  • Avatar Marco Dornelas disse:

    Muito boa matéria. E suscetível de novos episódios

  • Avatar Natureza disse:

    Parabéns pela entrevista!
    Tive o prazer, de como mestre de cerimonias, apresentar, Fernando Perilo aqui em pirenopolis, no inicio de sua carreira e tbm no Canto da Primavera , de cujo festival Fernando e Sahul contribuiram sobremaneira.
    Ele merece!
    Saúde e paz amigo. Amigo

  • Anna Paula Anna Paula disse:

    Ótima entrevista e ótimos pontos de vistas !!! 👏👏👏👏🎶

  • Marcelo Melo Marcelo Melo disse:

    Entrevista maravilhosa. Traz a memória uma época de efervescência cultural muito rica. Parabéns tanto ao entrevistado pela contribuição à MBP de Goiás, quanto ao entrevistador pela brilhante ideia.

  • Avatar Noemy Faria disse:

    Adorei a matéria. Revivi momentos deliciosos da época. Como os nossos músicos goianos são ótimos. Foi um privilégio curtir intensamente o momento.

  • Avatar Ecio Duarte disse:

    Um cerzido de temas em torno do fio condutor que tem nos ajudado na travessia um pouco mais suave por tempos tão difíceis: a senhora música! Show! 🎵

  • Avatar Lucia Helena disse:

    Excelente!
    Bem contextualizada.
    Entrevista oportuna, bela história de vida e musical.

  • Avatar Nelson disse:

    Entrevista espetacular. Vivi cada momento dessa revolução com as apresentações nos bares; era uma agitação imensa. Além de acompanhar desde o início a carreira do meu irmão Fernando, cantor e compositor de uma sensibilidade musical ímpar. Vida longa, Fernando! Sucesso sempre!

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