Primeiro dia de 2024 com Nina pelas ruas frias da multicultural Madrid
Marcio Fernandes – O primeiro dia do ano começou em casa com a celebração dos quatro anos da Nina e os 61 do vovô. Um bolo bem simples e a alegria contagiante desta menininha sapeca que faz do cotidiano de viagem fascinante aventura.
Descemos a sofisticada Calle Serrano, lotada de lojas de grife que não me dizem nada, em busca do Parque de El Retiro em curta caminhada pelos ares gelados da cidade. Na chegada, ao longe, saxofonista colombiano tocava Aquarela do Brasil enquanto duas ciganas tentavam envolver os transeuntes com o golpe manjado da erva da sorte.
De nariz empinado, uma francesa desfilava a elegância superior da magreza caucasiana em casaco de vison como se fosse uma diva da Belle Époque. Logo à frente, Nina pulou sobre meus ombros para apreciar um mágico a exercer a profissão de vender ilusões.
Depois, parou para ser fotografada, dividir abraço com artista de rua vestido de sapo, e aproveitar para dizer a todo mundo que aquele era dia do seu “aneversário”. Uma senhora de burca, modelo inverno, se misturou à multidão de infiéis, mesmo sabendo do pecado cometido contra as leis de O Corão.
Seguimos em direção do Palácio de Cristal e eis que revoada expressiva de patos cobriu o céu. Eles só queriam ser notados pela turistada sem noção que caminha de cabeça baixa despercebida de que há vida além do WhatsApp.
Japas de máscara de Covid faziam selfs certas de que seriam reconhecidas do outro lado do planeta por conta dos olhos puxados e das roupas de grife italiana. Em outra parte do parque, a brasileirada mandava em voz alta um “quanto sale” para vendedor de cachorro quente que nada entendia do portunhol da arrogante classe média bananeira.
Eu parei na Fonte dos Anjos Caídos e tentei desesperadamente que cisne negro solitário me explicasse como esses seres celestiais tiveram as asas quebradas. Não é que me aparece um ameríndio argentino, gente boa, tomando chimarrão e com cara feliz de quem se deu bem ao dar um “nunca más” para as terras ao Sul do Equador?
Após deixar o majestoso parque coberto de folhas de Plátano que começaram a cair no último outono, achamos que Madrid estivesse toda fechada por conta do feriado universal e fomos encarar um restaurante mexicano. Nunca tinha provado da culinária de lá por puro preconceito e me deliciei com alguma coisa que eles chamam de tacos.
Em seguida, ao subir uma rua estreita super descolada, encontrei Jimmy Hendrix pintado em parede com cabeça de leão. Bem próximo da Praça de Santana, grupo de sem-teto de várias nacionalidades fazia festa de Réveillon atrasada certamente a celebrar a sobrevivência à noite ingrata nas calçadas de Madrid.
Indiferente umas às outras, dezenas de espanholas cobriam as ruas da cidade em competição de quem usava as mais deselegantes botas de chacrete. Nina só queria saber de ir a loja de presentes, acabou por cair no sono e perdeu a extraordinária visita ao Palácio Real.
Confesso que fiquei meio melancólico ao assistir violinista a fazer solo da passagem mais triste do Concierto de Aranjuez, que sempre me machuca por conta de desapontamento que carrego há anos no coração. Ao ganharmos a Praça de Espanha, o céu aberto trouxe o vento invernal que instantes antes havia lambido o cume gelado da Serra de Guadarrama e paralisou minhas canelas de Sabiá-Laranjeira.
Pequeno grupo de italianos super maloqueiros se aproveitou da trégua dos rigores legais da Guarda Civil Espanhola para fazer montaria no rocinante da estátua de Dom Quixote e posar para foto que seria publicada no fugaz stories do Instagram.
Nina, como sempre, teve momento de revolta, se recusou a me dar pedaço do churrasquinho de pão de mel para logo ficar de bem ao chegar nas escadas rolantes do metrô, onde haveria brincadeira de escalada de montanha com o vovô.
De volta ao Bairro Salamanca, observei casal que dividia banco a se aquecer em público no primeiro dia de 2024 a fazer planos de amor para os próximos 200 anos na multicultural Madrid. Me esqueci de mencionar o aroma de jasmim e âmbar que pairou no ar do começo ao fim.
Texto e fotografias Marcio Fernandes
Uai, Márcio … encarar Madrid em pleno inverno? Eu estive por aí 02 vezes, mas sempre em Março. Temperatura. Deguste aquele maravilhoso presunto Ibérico por mim!
O texto é diverso como um painel de Bosch na versão Walt Disney, com imagens tão bem encaixadas quanto…
Querido Américo, já estive outras vezes em Madrid no inverno quando era mais novo. Desta vez, na condição de idoso, estou morrendo de frio.