Quando a saudade deixou de ser o pior castigo
Marcio Fernandes – Tudo pode caber em um dia de longa caminhada, depois de extenuantes passadas consecutivas que superam fácil 20 quilômetros. Em vez de segregar os desconhecidos, a distância dolorosa une até os opostos de mochilas nas costas, ainda que seja só por um tempo. Melhor, a longa distância da caminhada traçada no imprevisto da aventura torna especial os novos amigos.
Em um final de abril na Espanha aconteceu um monte de coisa em um único dia. Eu cheguei no ponto mais alto do Caminho Francês de Santiago. No Cebreiro caia nevasca grande na primavera, que já deveria estar franca de campos coloridos. Fui picado no punho por aranha e conversei com um montanhista e músico galês, da minha idade, que detestava os Beatles por uma série de motivos.
Na conversa boa enquanto nevava lá fora, em mesa grande de gente super bacana da Dinamarca, e uma alemã muita chata que se achava por ser funcionária da ONU, perguntei ao Neville se ele havia assistido ao sensacional filme espanhol “Viver é fácil com os olhos fechados”. Tradução do primeiro verso da segunda estrofe de Strawberry Fields Forever, de Lennon-McCartney.
O músico desconhecia a obra-prima de Daniel Trueba. Falei da história do professor Antonio San Ramón, aficionado por John Lennon, de gestos estabanados em terno e gravata, que ensinava inglês na interpretação das letras dos Beatles na década de 1960 na Espanha Franquista. Interpretado magistralmente por Javier Cámara, o personagem principal faz uma longa viagem até a Almeria e apronta todas até cumprir o objetivo de se encontrar com Lennon, que de fato estava no sul remoto da Espanha naquele 1966. Nesta parte, o cinema cumpre excepcionalmente o papel de suprir a realidade.
Ninguém é obrigado a gostar de coisa nenhuma, mas os Beatles são uma banda que me toca como se hoje fosse 1970, ano em que o grupo se desfez. Eu não faço parte dos que culpam Yoko Ono pelo fim dos Beatles. Ela só desligou da tomada um pessoal que já não se suportava mais por uma série de razões criativas. Uai, ela foi viver romance lindo com um edipiano cheio de razão e genial.
Os Beatles não são uma música contemporânea da minha geração. Eu pertenço à que sucedeu o acontecimento da banda a cada disco e deixou o cabelo crescer a medida em que eles se tornavam lisérgicos. Sou um beatlemaníaco de nascimento, justamente por, em 1963, eles terem gravado o primeiro disco. Só dez anos depois do fim dos Beatles que fui começar a entender as melodias de arranjos sinfônicos e as letras, principalmente do Paul, de uma inteligência literária de chorar.
Eu conheço gente que gostaria de ser mais velha e antecipa o tempo. Não sei se é uma boa ideia. O gostoso de não ter tido 20 anos quando os Beatles começaram é poder ouvir as músicas sem saudosismo. A parte ruim é não ter morado um tempo em Londres por volta de 1968. Mas eu estava lá de certa forma e pude sentir que Londres estava comovida em uma banca de jornal em Portobello repleta de manchetes da morte de George Harrison.
Minha história com os Beatles está ligada a duas paixões e um grande amigo. Sobre a primeira, por ciúme retroativo, eu me diminuía ao ouvir “For no one”. A segunda, por amor compartilhado pela banda, “The long and winding road” fazia a gente morrer de vontade tomando vinho de madrugada. Sobre meu amigo, nós tivemos ruptura por exaustão de convivência. A saudade foi o pior castigo, como escreveu o Chico. A gente voltou a ficar amigo. Ele sempre me pergunta se quero ouvir Beatles em vinil quando a gente se encontra. Eu geralmente peço “Eleanor Rigby” para me lembrar de quem se recusou a me amar.
Marcio Fernandes é jornalista
Muito bom!
Amo os Beatles. Adorei o texto. Viajei no tempo. Obrigada, Marcinho. ❤️
Essa bateu forte. A “tinta” falou da maior banda de todos os tempos, de amores correspondidos ou não e de amizade. Perfeita, Marcio.
FENOMENAL SEMPRE DE PARABÉNS