Resposta ao tempo com a Nana no Leblon

Marcio Fernandes – Eu e um amigo que não vejo há 15 anos — nem sei se ainda é amigo — diretor de uma produtora de audiovisual de Goiânia, ficamos uns dez dias no Rio de Janeiro gravando um filme para a campanha Goiás Contra o Crime, em março de 1999. Foram longos dias colhendo depoimentos de artistas da Rede Globo em apoio à iniciativa que surgiu após o fim do sequestro do irmão da dupla Zé di Camargo e Luciano.
Missão cumprida nos estúdios e nos camarins da emissora, naquela sexta-feira nós decidimos beber whisky e ouvir música boa. Como a gente estava hospedado no Leblon, e não queira andar de bar em bar, a boa escolha foi assistir ao show de Sueli Costa (1943-2023) no Plataforma. A casa era uma churrascaria e local de espetáculos musicais, com uma fachada de neon enorme e multicolorida que lembrava alguma coisa de Manhatan. Ela foi consagrada por ser um dos locais preferidos por Tom Jobim e fez muito sucesso nos anos 1980/1990. Foi demolida em 2008 para dar lugar a um edifício de não sei quantos andares.
Embora acredite que a Simone seja a quarta cantora mais chata da MPB, cuja liderança isolada pertence à Clara Nunes, as composições gravadas por ela de autoria de Sueli Costa eram sensacionais no fim dos anos 1970. Depois, certamente iria rolar muita coisa que eu desconhecia na voz e piano da magnífica compositora. Nas mesas do Plataforma havia alguns artistas famosos, mas não sou de dar conversa mole para celebridade. Rigorosamente, todos os influenciadores não me influenciam, especialmente dentistas que fazem cirurgia plástica.
Como jornalista, já havia entrevistado muita gente interessante da música, da pintura, da arquitetura, da literatura, da fotografia, do cinema etc. Agora, forçar amizade estava completamente fora de questão. Mesmo porque nossa conversa estava boa, demos muitas risadas das gravações e das histórias de bastidores da Globo contadas por ajudantes de câmera e contrarregras, o baixo-clero da produção. Não havia um texto pronto, então eu tinha de improvisar a fala de cada artista, explicar o que era a campanha e isso às vezes gerava alguma crise de estrelismo de artistas emergentes. A Marlene, diretora da Xuxa, ao contrário, teve um carinho enorme conosco e logo ela aprovou o texto para a Rainha dos Baixinhos gravar.
Naquele tempo, era natural fumar em espaço fechado e nas mesas do bar sempre tinha alguém se deliciando com aquela combinação perfeita de cigarro, whisky e um certo baby beef especial da casa. As luzes do ambiente foram suave e constantemente diminuídas, houve um silêncio e Sueli Costa entra no palco com o holofote dirigido para o piano. Ela se senta na banqueta e começa o show com Face a Face. Havia algo errado na harmonia e quando ela passa para a música seguinte ficou claro que a artista estava completamente embriagada e não tinha condição material de prosseguir com o espetáculo.
Nana Caymmi deixou a mesa bem próxima da nossa, não só ajudou a amiga a se retirar do palco como assumiu o controle do microfone. Antes de cantar, anunciou que se tratava de uma canção de Aldir Blanc e Cristóvão Bastos que dava título para o seu novo disco, gravado em 1998. Era Resposta ao Tempo, uma daquelas músicas que você se encanta na primeira audição. Já estava dado o show que não houve. Nana Caymmi volta para sua mesa, continua a beber e não tira o olho da gente. Eu fiquei meio cismado com aquilo, olhava para fundo para ter certeza de que ela estava nos observando, até que falei para meu amigo que o problema era com ele. Uns quinze anos mais velho do que eu, pela idade da Nana Caymmi, ele era o cara da noite no Plataforma.
Não deu outra, o camarada se sentou na mesa da filha de Dorival Caymmi, começou a bater altos papos com o pessoal e foi rolando uma saliência considerada boa, mas muito respeitosa entre eles. Logo eu fui convidado a me juntar ao grupo e ficamos bebendo até a madrugada. A galera achou muito interessante o que a gente estava fazendo – um diretor de cinema e um jornalista de Goiás – sem aquela conversa sobre índio, onça e beirada de rancho.
Chega um momento, todo mundo feliz com a alegria do whisky e das novas companhias, Nana Caymmi escreve no verso da comada um texto para meu amigo e deixa o número do telefone. Foi uma cantada escrita com esferográfica seguida de inominável decepção. Quando fomos pagar a conta, o cara queria ficar com a comanda, mas maitre simplesmente disse que era impossível, pois o cartão de anotação de consumo era numerado e aquilo iria prejudicar a contabilidade da noite. Na confusão, ele nem pensou em anotar o telefone da Nana. Não havia o recurso do celular que tem hoje. Sem a comanda, aquela noite terminou como se não tivesse existido; como se fosse uma resposta fugaz ao tempo de algumas horas que ficaram para sempre com a Nana no Leblon e foi parar na prestação de contas do garçom.
Marcio Fernandes é jornalista profissional
Maravilhoso, Márcio. Assim como maravilhosa era Nana. Fica “Resposta ao tempo”.
Marcelão, muito obrigado e aquele abraço!
Muito boa a crônica. O desfecho, então…
Também tenho umas duas passagens envolvendo a cantora. Um dia te conto.
Marcos, querido, muito obrigado e vamos colocar a conversa em dia.
Dr Márcio Fernandes… vc e um fenômeno..
Leda, muito obrigado mais uma vez.
Dr Fernandes,,,, Vc e fenômeno
Que história! Tb assisti um show (inteiro) com a Nana no Rio….e Resposta ao Tempo é simplesmente fantástica!
Obrigado pelo comentário, Maria. Nana era tudo de bom.
Olá “Gonzalez”
Adorei a crônica, não lembrava do final etílico. Em tempo, ainda somos amigos a vida e que exerce a função dos desencontros.
Abcs.
Valeu Ronaldo. Foi uma noite e tanto aquela.
Que história fantástica amigo? Que atitude bacana da Nana? A fugaz experiência etílica, a inesperada cantada da artista, escrita numa comanda de um insensível garçom que apagou o tempo e a resposta daquele momento. Só você pra contar essa boa lembrança com tanta poesia, meu caro amigo!
Prezado Jeovalter, muito obrigado amigo.
Que delícia de ler . Márcio you’re the best
Lucia, many thanks!
Texto fenomenal e a história então, nem se fala, digno do grande jornalista Márcio Fernandes! Me vi ali sentado com vocês no Plataforma!!!
Querido amigo Fausto desde a Faculdade de Jornalismo. Muito obrigado. Você sabe que sou seu fã.
Ótima lembrança ! Resposta ao tempo !
Dra. Jane, muito obrigado pelo comentário. Eu sei que você, como eu, foi criada ouvindo música boa.