segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Segredos de Estado

 

Px Silveira – Morava em Brasília desde 1965. Meu pai, deputado federal por Goiás, acabara de perder a eleição para governador do estado por supostos 3.953 votos a menos. Ele foi o candidato de Pedro Ludovico. Aceitou a derrota, mas não aceitou que se chamasse a eleição de democrática. Para ele foi uma eleição militar. “Até o chefe da Região Militar andou peregrinando, de avião, pelos municípios, com seus subalternos dizendo aos políticos que eu, se fosse eleito, não tomaria posse. Essa pressão repercutiu muito no interior, só não em Goiânia, onde ganhei com margem de 80% dos votos”, disse em uma entrevista tempos depois.

 

Bem verdade que se o candidato da oposição tivesse tomado posse no cargo do mais elevado poder, isto poderia ser a gota d ‘água que justificaria uma intervenção em Goiás. Para o regime militar instaurado, ganhar em Goiás era questão de honra, pois tinham tomado verdadeira birra contra até então governador, Mauro Borges.

 

Uma ideia melhor acerca do que acontecia naquele momento podemos encontrar na entrevista da série Vultos Goianos, publicada em O Popular (06/06/82), em que meu pai faz uma análise do que aconteceria se tivesse assumido o cargo de governador: “Se eu fosse eleito governador em Goiás, teria sido deposto, ou morto, pois as condições políticas de Goiás tinham chegado a um ponto em que eu mesmo não sendo -como não sou- valente, teria que fingir que o era”.

 

 

A matéria, assinada pelo jornalista Brasigóis Felício, refletia os ainda tímidos ares da abertura política e estampou com destaque e em apenas uma frase o balanço do homem público José Peixoto da Silveira, que começou como prefeito de Jaraguá: “Dei a Goiás meu trabalho quando ele podia ser prestado por um civil”. Frase esta que resume toda uma época, na qual os protagonistas da oposição ao regime político vigente foram envolvidos por uma neblina opaca em que ninguém mais se reconhecia: “Desisti da política após o AI-2, e até deixei de votar por três eleições seguintes. Quando veio o AI-2 não discursei mais na Câmara, e previ que ele iria até o nº 100. Não veio, porque o AI-5, polivalente, aboliu essa necessidade. Com o Congresso esvaziado em suas atribuições, não quis ser candidato a nada, pois não aceitaria uma procuração do eleitor para depois traí-lo”.

 

Tudo isso acontecendo e eu cá com meus botões florescendo no jardim particular e isolado de tudo. Em casa, minha mãe falava de dois perigos que equivaliam ao céu cair em nossas cabeças: a polícia, em primeiríssimo lugar, e a maconha, adjunta. Como resposta, este seu filho, aos 11 anos de idade, era alheio a tudo. Nem curiosidade tinha. E isto também não a satisfazia. Daí o nosso amor recíproco que penso perdurou mais por um ter piedade do outro. Afinal, eram mesmo tempos estranhos, em que se faziam necessários jeito e força para segurar o céu. E o céu brasiliense, em particular, se não mais pesado, era o mais visível e os acontecimentos que vivíamos exigiam uma vigilância asséptica.

 

 

Foi nesta mesma época, da ostensiva polícia dos quartéis, que conheci a maconha (só dois ou três copos). Era a Brasília das ruas vazias e das notinhas em que as pessoas não tinham nada para fazer e iam circulando pelas Super Quadras de almas querendo se perder e ainda cheias de áreas vazias em que logo depois se construiria mais um prédio no mesmo modelito de seis andares servido por três portarias com 2 elevadores e 12 apartamentos cada, totalizando 46 apartamentos em cada prédio e 552 em cada Super Quadra, pode fazer as contas.

 

A Asa Sul naquela época era banguela, com áreas intercaladas de matos cerrados onde viviam gambás, viúvas negras e tanajuras. Tudo bem ali, eu juro. O âmago da cidade se enredava com o meio ambiente natural e ela ainda era inseparável do mato nativo que a abraçava e contornava suas vias asfaltadas desde o ato de sua inauguração, vencendo aquela batalha que Lúcio Costa desenhou na prancheta.

 

Engraçado ver como os veios de circulação no interior das Super Quadras já estavam todos eles prontos, calçados de meio fio e asfaltados, como se automaticamente saídos daquela prancheta genial, mas eles davam para lugar nenhum, pois faltavam os prédios a que eles serviriam.

 

Por enquanto, no lugar deles estava o mato virgem do cerrado, resistindo em vão. A cidade inteira vivia de prontidão e marteladas com prazo de validade, no entanto, já passara o momento do piche quente sobre a terra. Na SQS em que eu morava, por exemplo, só havia três prédios, mas ela já estava toda servida de suas pistas tentaculares. Aos poucos novos clarões iam se abrindo no mato cerratense e rapidamente, de umas férias para outra, construía-se mais um prédio, sem surpresa, pois parecem todos iguais. São 12 em cada Super Quadra, para não perder a conta.

 

O legal de Brasília, Plano Piloto falando, é a matemática que se pode usar para entende-la. Para qualquer lugar que se vá, pode reparar, começa-se indo na direção contrária, para então fazer um retorno e chegar. Os prédios são em produção limitada e embutidos nas Super Quadras bastante arborizadas. Nelas, as árvores são frondosas porque assim permite a fiação elétrica que é toda ela subterrânea, e estas, as Super Quadras,vão do 01 a 16, se dispondo em 4 linhas paralelas: as 400 e 200 abaixo do Eixo Monumental e as 100 e 300, acima.

 

Fugindo da matemática e das páginas dos jornais, eis que este mesmo que vos fala tirou de certa feita uma cobra coral de um elevador. Verdade que ela era pequena. Mas bem verdade que estava ali, no piso de um elevador social da SQS 203, Bloco D, onde morei por 16 anos no apartamento 306 de sala, copa, cozinha, área de serviço, banheiro, 4 quartos (1 transformado em escritório do meu pai), sendo 1 suíte, mais as dependências da empregada; neste mundo bem planejado a pequena coral fez para os pequenos o efeito de uma anaconda, já os adultos, nem aí. Para eles, estava dentro do previsto.

 

O elevador, aliás, era uma festa que ia além das cobras. Era não só usado para subir e descer, mas também para revanches de prender os amigos e algumas pessoas alheias. O truque era enfiar um palito de fósforo no orifício que existe na parte alta à direita do lado de fora da porta (está lá até hoje). Efeito diferente se conseguia puxando a porta com toda sua força antes de ela soltar o ferrolho. No primeiro caso, o elevador parava onde ele estivesse; melhor ainda se fosse entre os andares. No segundo caso, o sujeito chegava ao andar e a grade pantográfica se abria, mas a porta, não.

 

E ele, o bendito elevador de uma cidade sem distração, também era usado para se ter a sensação do abismo ao ficar do lado de fora no seu topo enquanto ele ia atendendo aos chamados dos moradores. A única dúvida era entre escolher qual a melhor sensação: a de sentir descer o tremendo bloco de ferro transportando gente lá dentro e a gente aqui em cima, ou a de ver o fosso se encurtando na medida em que ele subia. O elevador parava alguns metros antes de nossas cabeças tocarem o teto. Diversão impagável. E mortal, digo hoje. Sorte não ter havido acidentes. É inacreditável ter sido assim, me belisco para confirmar.

 

Passados os 14 primeiros anos, eu prosseguia sem nada brotando na cabeça e, sem perceber, abrindo um fosso para plantar poesia, que esta cresce em qualquer lugar. Achava muito divertido percorrer a avenida W3 Sul filando cigarros de todos que passavam por mim. Era uma forma de comunicação, mas que também rendia dois ou três maços que eu levaria para o colégio Dom Bosco no dia seguinte.

 

 

Foi quando então eu vi pela televisão o homem pousar na lua; 1968 teve para nós esta marca. Eu estava em uma lanchonete da SQS 103 saboreando uma banana split, que sempre fora um manjar caro pra burro, um luxo para os guris. Aproveitamos a distração de todos, inclusive dos garçons, e saímos correndo sem pagar a conta. Gritando: o homem chegou à lua!

 

De novo na mesma W3, a principal avenida da cidade sem avenidas, agora era o ano de 1970 e eu ia entrando de loja em loja para obter a versão promocional personalizada pelo estabelecimento da tabelinha da Copa do Mundo. Para que tanta tabela, meu Deus! O que importa é que vi e ouvi o Brasil se sagrar campeão em transmissão direta do México, em Guadalajara, no auditório da TV Brasília, que também ficava por ali, na W3 Sul. Transmissão foi direta, instantânea e simultânea em tamanho telão de cinema, mas não ainda em cores. P&B mesmo já estava ótimo. Se havia somente meninos na nossa turma, se a gente era besta pra caramba e se eu prendi a perna no vão da cadeira reclinável da sala ao gritar gol; sei lá.

 

Sei, isso sim, da alegria tímida e sem graça da comemoração do tricampeonato da Seleção Brasileira, para os candangos das ruas vazias (uma voz me diz hoje aqui na mente: “a gente não podia se reunir e formar multidão nas ruas, Pedro Bó). Era melhor ver a alegria dos outros no Rio de Janeiro e São Paulo que a nossa; pobre Brasília. Tudo viria estampado nos jornais do dia seguinte, como se Brasília fosse apenas plateia.

 

Ah, e se uma sinusite arrasadora me atacou ao guidão da bicicleta, a ponto de não conseguir mais pedalar; sei lá. Agora já era de noitinha em uma das vias que não levavam a lugar nenhum no interior da nossa SQS e aquela mulher já veio parece que com o colchão surrado caído sobre o mato ralo no lote baldio. Lá estava ela acenando para os garotos. Combinado o preço e arrumado o dinheiro, então lá fomos nós fazer fila. Tudo organizado. Um amigo não quis a transa, mas pagou do mesmo jeito para acender uma lanterna que trouxera de casa e observar o sexo dela pelo tempo equivalente, que era de alguns poucos minutos.

 

Mais constrangedor foi a do pederasta (fica bem assim?) que em outro dia tentava nos convencer que ao se deixar chupar o pau ele ficaria maior que o dos colegas. Isso mesmo: quisesse ter um pau grande, era só deixar ele cuidar de tudo. E tudo isso acontecia ali mesmo entre os prédios, os matos e o gramado das partes ajardinadas estendendo o seu tapete verde que dá formas à fascinante abundância de Brasília, até ser puxado.

 

Mas, com a minha primeira namorada não seria assim em qualquer lugar, foi em uma das camas do quarto das minhas irmãs. Nem me lembro de qual. Aproveitando a saída delas, lá fomos nós. Dessa ninguém da família até hoje nunca desconfiou, e nem vão saber se não lerem estas linhas. Falando em ler, tinha os jornais. Forçosamente mais literários e evasivos que hoje.

 

 

O Correio Brasiliense existia desde sempre e ler não era perigo, viu mãe, já que jornais não traziam nada do que realmente acontecia. Por exemplo, fiquei esperando a notícia que explicaria certa passagem agressiva de comboio de tanques nas ruas e, principalmente, a notícia que jamais foi escrita e publicada do posicionamento de canhões no prédio vizinho ao nosso, mirando justamente para a sala de visitas que a minha mãe tanto cuidava e onde não eram permitidas brincadeiras.

 

O nosso prédio, explica-se, sem justificar, era residência de alguns deputados federais e essa teria sido uma forma de intimidação de que se esperava os reflexos nos pronunciamentos e votações na Câmara dos Deputados. Eles eram assustadores na posição em que estavam, não os deputados, mas os canhões. Foram levados para o topo daquele prédio e certeiramente apontados na surdina da noite. Mal rompia a alvorada, os víamos impertinentes inclinados contra nosso peito e assim se transcorreram semanas. Nos acostumamos a eles a tal ponto que não me lembro de quando os retiraram. Aliás, da cabeça, nunca saíram. Ainda estão lá.

 

Foi por aí que meu pai, deputado pelo PSD de Goiás, se desiludiu da política antes mesmo de contar até o Ato Institucional nº 5 e dela se afastou definitivamente. Lembro-me que afundado no banco traseiro do carro, fomos parados em uma barreira perto de Abadiânia por homens do exército ostensivamente armados e querendo o documento de todos, principalmente ao saber que quem dirigia era um deputado.

 

Enquanto isso, minha irmã mais velha em São Paulo passara a viver na clandestinidade. Os pais não comentavam nada com os filhos mais novos (éramos oito no total, metade então já saídos de casa). Hoje vejo que essa reserva (aquela assustadora censura materna) era medo de seguirmos na mesma trilha. Deixavam-nos na inocência. Ou mesmo, na mais completa ignorância. O que deu no mesmo.

 

Só mais tarde ficaríamos sabendo dos seus encontros em igrejas na paulicéia, em que a irmã recebia alguma ajuda para o sustento e se atualizava com as notícias da família. Foi assim até que, com seu marido, filho de senador amazonense, e hoje meu compadre, conseguiram sair do país para cumprir exílio no Peru. Eu, por cá, nas entrelinhas do Distrito Federal, enchia de poesias o meu caderno escolar do Colégio Pré-Universitário.

 

 

Oscilando na tristeza, recebi de meu sensível pai US$ 500 dólares e pude viajar de mochila até Machu Picchu, quando passei por Lima e os visitei. Ainda não tinha feito o vestibular. E o endosso da minha mãe veio relutante. Meu pai precisou expor a ela que o perigo estava em qualquer esquina, principalmente ali em Brasília, que não tinha esquina, bastava sair de casa. E foi assim que botei o pé pra fora e saí por aí sozinho para além das fronteiras brasileiras. Trem da Morte. Santa Cruz de La Sierra. Lago Titicaca, La Paz, Cuzco, Puno e Antofagasta. Bolívia, Peru e Chile. Tudo de carona, de trem ou de ônibus.

 

Minha alma, devo dizer, se descarrilhou no vagão que nos levava à montanha sagrada Machu Picchu ao encontrar com a de Amparo Ibarlúcia. Ficamos os dois por um instante no sopé, abraçados no poço de águas calientes. Foi uma trilha que se abriu ao lado dos nossos caminhos. Ela, uma argentina, também uma solitária. E como precisávamos um do outro!

 

No trajeto de volta, ela tinha a passagem de avião para Lima e o que para ela se transcorreu em minutos, para mim se transformou em 48 horas de aventuras por terra. Com direito a passar mal depois de comer duas omeletes em refeições seguidas, a ponto de ter que viajar na janela do ônibus para ir vomitando conforme vinha a necessidade. Os dólares, obrigado meu pai, duraram dois meses e o suficiente para passagem, comida, hospedagem e até a aquisição de uma lembrança mui digna como a queña que me acompanha desde então.

 

 

Voltei outro para Brasília. Ecoava o som da flauta pelas escadarias do prédio onde morava e só andava tendo no bolso uma inseparável gaita, que tirei dos rocks que ouvia. Já em franco processo de musicalização, a professora da Escola de Música de Brasília, ali na L2, uma pianista muito estranha, fez minha admissão após o teste em que ela ia subindo as escalas no teclado e eu solfejando. Disse-me, ressalvando a vocalização um tanto desafinada, mas que se recuperava mais na frente: “Menino, seu caso é patológico, mas você pode entrar”.

 

Não sei se foi antes ou depois deste teste, o fato é que em determinando momento, como que vindo do nada, me tornei macrobiótico dos mais radicais. Eu não bebia nem água, somente o banchá. Tomate, jamais, é muito yin. Carne, de jeito nenhum, muito yang. A dificuldade maior não era o regime estrito e rigoroso, mas achar um restaurante com o mínimo necessário para se alimentar quando viajava. Em casa, eu fazia minha comida à parte, invadindo a cozinha e ocupando uma boca do fogão: arroz integral era feito todos os dias e o pão integral era também eu mesmo que fazia, uma vez por semana. Quando resolvi viajar de ônibus a Salvador, já prevendo dificuldades, levei um bocado suficiente de arroz integral cozido, que ia fermentando na vasilha de plástico, infelizmente, mas sem deixar de ser nutritivo.

 

E como esquecer da viagem anterior em que fui com o irmão um ano mais novo de carona pelos estados costeiros até depois entrar na floresta (ele desistiu aí e voltou mais cedo) e chegar em Manaus pela transamazônica ainda sendo aberta, fazendo o caminho de volta de barco até Belém do Pará, e de lá percorrendo em dois dias ao chão poeirento da rodovia Belém-Brasília? Detalhe: dando vivas a Bernardo Sayão, sobre quem, tempos depois, eu apresentaria o filme documentário Tempo de Gigantes.

 

Esta foi uma viagem mais rápida, de apenas um mês. Emagreci horrores. E aí então, novamente na capital, instalado na mesmice espreguiçada das vias longas e retilíneas, nos fins de semana o programa era sair à procura de festinhas em que se ia de penetra naquela Brasília nascente. A caça adolescente era facilitada pela vizinhança das Super Quadras e a vulnerabilidade das janelas dos apartamentos iluminados. Era só sair andando por entre os prédios. Com certeza se acharia uma boa festa para aquele sábado. Aí então era só subir fazendo uma cara circunspecta de quem está preocupado por chegar atrasado e entrar sem dizer nada. E rápido, ir direto aos salgadinhos, refrigerantes e bolo, pois não daria para ficar muito tempo sem ser descoberto. Tudo acontecia e se repetia sem novidades.

 

Quando vinha à Goiânia visitar tias e primos, eu sabia de tudo que aconteceria na novela da Globo, que prendia as atenções, pois Brasília mostrava os capítulos adiantados em ao menos uma semana. Já os filmes (de salas, tinha o Cine Brasília e apenas mais uma outra no setor bancário, mas sempre em reforma) eram proibidos para menores. Como eu tentei ver Olga, pelas supostas cenas de nudes, mas debalde. Shows e teatros, jamais! Teve um aniversário da cidade, ainda na década de 1960,que Roberto Carlos e Erasmo vieram cantar depois de cinco horas de atraso, mas o que prendia a atenção era a corrida de carro 24 horas, disputada na pista improvisada que passava pela rodoviária. E um amigo da escola morrera ao tentar escalar os cubos laterais do ainda não inaugurado Teatro Martins Pena, na Esplanada dos Ministérios.

 

 

Sem nada acontecendo de entrementes, as brigas de turma estavam entre os melhores afazeres daquelas noites rasas. Batom era o senhor terror. Um baixinho e lutador aprendiz. Sua turma era a mais falada e saia sem dó ao encalço das outras. A gente, já era cada um por si. Nem pra turma baldia prestávamos. O jeito era descontar nos ratos. Fazíamos com eles o mesmo que tentavam fazer com a gente. Ratos demais em Brasília, desde sempre. Bichos grandes. Ratazanas. Se tornaram baita diversão. A gente descia aos porões do prédio armados de porretes e era sempre certo a matança de uma dúzia, talvez mais. Cada vez mais espantados com o tamanho deles, nem imagino como seriam os de hoje.

 

Naquela noite fomos novamente fazer amor dentro do fusca emprestado dos pais no setor das Embaixadas, deserto que só. Depois da Hora do Brasil, aguardando a entrada do Big Boy diretamente do Rio de Janeiro, ouvimos o locutor local dizer nome por nome dos aprovados no vestibular. Passei para o meu período de maior solidão, dado o tanto de gente com que convivia sem falar nada e a imensidão arquitetônica que nos rodeava, desde o trajeto ao sair de casa.

 

Na UNB, eu só vi e vivi os escombros do que Darcy Ribeiro planejara, ainda que o trabalho de Oscar Niemeyer, que criara as estruturas, ia se consolidando como o previsto. Os corredores internos do prédio principal da universidade que era para ser modelo eram ocupados por gente cinza e sisuda. Medrosa. Felizmente não eram corredores comuns, mas que se incorporam à área central aberta ao céu. As plantas, sim, é que eram felizes ali, balançando ao vento e tomando seu sol.

 

Nossas aulas nos anfiteatros não traziam sensação alguma, muito ao contrário do que era esperado pelas grandes descobertas que teríamos ali. Nada. Era aquele bando de gente indo de um lado para o outro. Nas classes e nos laboratórios, era aquela mesma presença silenciosa e desanimada, mesmo para mim que cursava ao mesmo tempo Biologia e Comunicação. As duas bolhas estudantis, uma de exatas outra de humanas, se complementavam na pasmaceira que era geral. O ápice da desilusão foi por obra do Chico, professor de Letras (genial, este cara). Ressabiado, ele abriu uma conversa franca com os alunos quando nossos encontros já iam ali pela terceira semana de aula para dizer que não precisaríamos fazer prova e a nota do curso cada um daria a sua.

 

 

Tirei “A”, com louvor. E então, com a namorada (ela nunca pisaria novamente no país), vou viver na França. Sem verba e amparo dado aos exilados, posto que o era por desamparo próprio e não por fatores externos, a solução foi, na capital francesa, tocar flauta no metrô e trabalhar de garҫon au pair. Já na Côte D’Azur e Provença, colher batatas, maçãs e fazer a vendange, com direito a duas garrafas de vinho no final do dia. Na sequência, deu de formarmos um grupo musical razoável, O Aveloz, e gravar um compacto com duas composições próprias, dentre tantas que hoje, sem tempo para elas, não me soam mais.

 

Volto para o Brasil no início do processo de abertura política, não necessariamente por esta razão. Não me lembro se passei o réveillon do início da década de 1980 na África ou já de volta ao meu país. Mas agora vai, Brasil. Fernando Gabeira de sunga de crochê em Ipanema e meu amigo poeta marginal da geração mimeógrafo, Nicolas Behr, desfilando de prancha em busca de ondas no Eixo Monumental de Brasília.

 

A namorada, linda ela, já voltara cremada. Em Goiânia, absurdamente poeta, eu trabalhava como redator publicitário com um certo charme que se configurava em um salário magro, mas bem acima da média. Vieram uns e outros livros de poesias. Quase entediado, resolvi fazer um auto-anúncio em que me retratava pelado correndo por uma vereda e assim me vendi para o Diário da Manhã, que nascia forte e queria ter sua própria agência de publicidade.

 

 

Por causa do anúncio chamariz, atendi ao chamado de Batista Custódio, que então conheci em sua sala de comando com o revólver que ganhara de Pedro Ludovico sobre a mesa, dividida com uma Olivetti tendo uma lauda em branco já engatilhada de prontidão.

 

Simultaneamente, comecei a tratar da sobrevivência na primeira pessoa, sem querer depender de patrão. Fazendo doublé de redator e empresário, abrimos em abril, já com a Betúlia Machado, o Vídeo Bar Restaurante Ao Arroz de Neon. Foi um ano inteiro de uma festa total, abril a abril, não fosse pelo fato de ter que atender os fornecedores para reposição de estoque às 9h da manhã.

 

O movimento do bar era de parar a rua. Uma máquina xerox ficava à disposição dos frequentadores que tiravam cópias do corpo e as dependuravam nas paredes. Ou não. Fizemos uma semana de pratos de carneiro e levamos os ditos cujos para passear pelo restaurante enquanto eram degustadas as suas carnes. O Gira Goiana gravava em vídeo qualquer apresentação que acontecia no teatro e as reproduzia na  quarta-feira seguinte diante de uma roda de críticos convidados. O Maurício Vicente (Mauricinho Hippie), artista inaugural das ruas de Goiânia, fez ali sua primeira e única exposição. Lula, que tempos depois se candidataria pela primeira vez, esteve lá em noite de lançamento do escritor Márcio Souza, seu amigo e co-fundador do PT que trouxemos de Manaus. Embalados, fizemos um leilão de obras dos principais artistas da cidade. De 49, ficaram apenas duas sem vender. Foi o suficiente para largar tudo e dar o próximo passo: abrir a MultiArte Galeria. Mas antes disso, o concurso Poemas Pelas Diretas Já, promovido ali, teria repercussão nacional e recebemos o endosso nas páginas da Folha de S. Paulo, que nos fez ser inundados de poemas vindos de toda parte do Brasil. O aclamado vencedor, creio que me lembro até hoje, foi o poeta pernambucano criado no Rio de Janeiro e vivido em Brasília, Luís Turiba, com o verso minimalista “Urna-se a nós”. Eram as eleições diretas que já vinham chegando, mas falar delas ainda era uma ousadia que nos impunha o desejo. E bem, a coisa agora começa a engrossar, mas acho que aqui já terminamos o período proposto.

 

Post escrito por Px Silveira, produtor cultural, escritor e jornalista

pxsilveira@me.com

 

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Este post foi escrito por: Britz Lopes

As opiniões emitidas nos textos dos colaboradores não refletem necessariamente, a opinião da revista eletrônica.

3 comentários em "Segredos de Estado"

  • Avatar Maria Leda17063@gmail.com disse:

    Parabéns! Esse post está simplesmente perfeito…

  • Avatar MARCIO FERNANDES disse:

    Querido PX, muito obrigado pelo texto maravilhoso.

  • Avatar Yuri Baiocchi disse:

    Px, querido, sensacional este relato. Tanta coisa poderia ter sido… Na minha cabeça, desde o início, a preocupação silenciosa da Galiana. Como teve de ser forte. Fez um bom trabalho: encaminhou-os sem apontar a direção.

    Um abraço,

    Yuri.

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