Traída pela banheira
Duas importantes características da Britz viajante. Uma é sempre andar na linha – não que eu transgrida qualquer regra no meu país, mas quando estou fora sou ainda mais atenta às leis e costumes locais: na Itália, tomo o vinho tinto em temperatura ambiente e nunca peço café com pão – lá é sempre com algo doce; na Espanha acompanho com palmas a batida do flamenco e na Holanda como oliebollen, um bolinho sem graça, junto com meus amigos de lá no Réveillon; na Inglaterra não ouso me atrasar um segundo – aliás, como em nenhum outro lugar.
A segunda é nunca me meter em aventuras aquáticas – sou de peixes, sei nadar para o gasto, mas tenho medo de água, menos as minerais gaseificadas – principalmente a Acqua Panna dos Apeninos Toscanos, presença constante nos banquetes dos Medicis –, a que dá volume a uma banheira quentinha e, é claro, a que sai do chuveiro e pia.
Quando fui estudar em San Diego, na Califórnia, hospedei-me em casa de uma família. Logo na recepção, durante o repasse das lições de como tudo funcionava por lá, Mike, o patriarca, avisou que a Califórnia tem problemas com água, então o precioso líquido deveria ser usado com parcimônia. Desenvolvi táticas para o banho rápido na tentativa de ser hóspede-exemplo. Fui bem até certo ponto.
Os Smiths adoravam o mar e tinham um veleiro imponente para não sei quantas pessoas. No primeiro domingo por lá, fui convidada a participar de uma tradicional incursão mar adentro. E, claro, para não romper com a simpatia, fui com eles. O pessoal era bem de situação, mas com certa queda para a farofa. Então, levamos sanduíches e bebidas na cesta de piquenique – pelo menos não era um isopor.
Numa altura do Pacífico em que quase não se via mais a cidade, começou um vento daqueles, tipo filme de terror. Mil trovões por segundo. A tempestade veio logo, é claro. A embarcação sacudia para um lado e outro fazendo com que eu travasse a mandíbula – quando tentava relaxar, mordia a língua. Tormenta pura e aplicada. Àquela altura, tinha a nítida impressão que Mike não estava mais no comando da embarcação, a fúria da natureza sim. Coisa de duas horas depois, chegamos à margem. Escapamos ensopados e gelados. Passou!
Na última semana de curso, já enturmada com os colegas de sala da UCSD, programamos tomar margaritas em Tijuana, a primeira cidade depois da fronteira com o México, onde rola uma farra non stop. Tivemos de pedir permissão à diretoria da Universidade – e descolar um visto especial para passar pelas gigantescas catracas da divisa –, mas fomos advertidos que, se perdêssemos ou tivéssemos o passaporte roubado, seríamos deportados de lá mesmo.
A tensão foi tanta com o passaporte amarrado ao corpo que não me diverti e tomei só uma margarita para não desfocar a atenção. Na volta, uma fila gigantesca de adolescentes americanos que atravessam para beber sem apresentar documentos, nos obrigou a esperar horas num frio cortante. Cheguei literalmente congelada na casa dos Smiths, às 3 da madrugada.
Pensei rápido: como todos dormiam, eu poderia encher a banheira de água bem quente para descongelar meus pés e evitar a iminente hipotermia. Assim o fiz com o mínimo de ruído. Missão cumprida, abri a válvula para não deixar pistas da minha orgia em tempos de racionamento de água. Quando o restinho do líquido ia ralo abaixo, a forte sucção fez um barulho infernal, acordando a todos. Virei ré confessa. No café da manhã, Mike me fitou com olhar de seca-pimenteira e, antes que ele dissesse algo, expus os meus congelantes motivos. Acabei sendo perdoada e virando querida de novo. Eu já sabia que brincar com água não é para os fracos.
Foto: Arina Krasnikova
😂😂😂😂😂 que aventura !!! Você tem sempre alguma coisa para contar divertida !! Essa eu não sabia 👏👏👏👏👏
Sensacional!
Viajante aventureiro. Temos muito a aprender com suas andanças mundo a fora. Gostei@
Wow, vivi tudo e todas as emocoes.Maravilha de texto, fantastico, passou em todos os testes…Bravissima!
Only YOU…quem nao gosta de aventuras?? Fantastico seu texto
Viva as aventuras, quem nunca passou ainda mais em territorio desconhecido onde o mundo parece ter
chaos de ovos pela frente a fora..posso imaginar o sufoco da agua te caguetando..
.Coitada traida e dedurada pela agua!
Lindo texto. Vivi tudo. 🌹❤️
Conhecia essa sua história, mas vc a descreveu tão criativamente que me pareceu a primeira vez.. E ri ainda mais do que quando ouvi há anos!🤣🤣
🤩 Parabéns pelo texto delicioso!
Britz, a aventureira. Sensações vividas e que só a gente sabe. Muita história pra contar mas que fica engraçada só muito depois, né não?
Parte da nossa história, né Arthur?