sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Traída pela banheira

 

Duas importantes características da Britz viajante. Uma é sempre andar na linha – não que eu transgrida qualquer regra no meu país, mas quando estou fora sou ainda mais atenta às leis e costumes locais: na Itália, tomo o vinho tinto em temperatura ambiente e nunca peço café com pão – lá é sempre com algo doce; na Espanha acompanho com palmas a batida do flamenco e na Holanda como oliebollen, um bolinho sem graça, junto com meus amigos de lá no Réveillon; na Inglaterra não ouso me atrasar um segundo – aliás, como em nenhum outro lugar.

 

A segunda é nunca me meter em aventuras aquáticas – sou de peixes, sei nadar para o gasto, mas tenho medo de água, menos as minerais gaseificadas – principalmente a Acqua Panna dos Apeninos Toscanos, presença constante nos banquetes dos Medicis –, a que dá volume a uma banheira quentinha e, é claro, a que sai do chuveiro e pia.

 

Quando fui estudar em San Diego, na Califórnia, hospedei-me em casa de uma família. Logo na recepção, durante o repasse das lições de como tudo funcionava por lá, Mike, o patriarca, avisou que a Califórnia tem problemas com água, então o precioso líquido deveria ser usado com parcimônia. Desenvolvi táticas para o banho rápido na tentativa de ser hóspede-exemplo. Fui bem até certo ponto.

 

Os Smiths adoravam o mar e tinham um veleiro imponente para não sei quantas pessoas. No primeiro domingo por lá, fui convidada a participar de uma tradicional incursão mar adentro. E, claro, para não romper com a simpatia, fui com eles. O pessoal era bem de situação, mas com certa queda para a farofa. Então, levamos sanduíches e bebidas na cesta de piquenique – pelo menos não era um isopor.

 

Numa altura do Pacífico em que quase não se via mais a cidade, começou um vento daqueles, tipo filme de terror. Mil trovões por segundo. A tempestade veio logo, é claro. A embarcação sacudia para um lado e outro fazendo com que eu travasse a mandíbula – quando tentava relaxar, mordia a língua. Tormenta pura e aplicada. Àquela altura, tinha a nítida impressão que Mike não estava mais no comando da embarcação, a fúria da natureza sim. Coisa de duas horas depois, chegamos à margem. Escapamos ensopados e gelados. Passou!

 

Na última semana de curso, já enturmada com os colegas de sala da UCSD, programamos tomar margaritas em Tijuana, a primeira cidade depois da fronteira com o México, onde rola uma farra non stop. Tivemos de pedir permissão à diretoria da Universidade – e descolar um visto especial para passar pelas gigantescas catracas da divisa –, mas fomos advertidos que, se perdêssemos ou tivéssemos o passaporte roubado, seríamos deportados de lá mesmo.

 

A tensão foi tanta com o passaporte amarrado ao corpo que não me diverti e tomei só uma margarita para não desfocar a atenção. Na volta, uma fila gigantesca de adolescentes americanos que atravessam para beber sem apresentar documentos, nos obrigou a esperar horas num frio cortante. Cheguei literalmente congelada na casa dos Smiths, às 3 da madrugada.

 

Pensei rápido: como todos dormiam, eu poderia encher a banheira de água bem quente para descongelar meus pés e evitar a iminente hipotermia. Assim o fiz com o mínimo de ruído. Missão cumprida, abri a válvula para não deixar pistas da minha orgia em tempos de racionamento de água. Quando o restinho do líquido ia ralo abaixo, a forte sucção fez um barulho infernal, acordando a todos. Virei ré confessa. No café da manhã, Mike me fitou com olhar de seca-pimenteira e, antes que ele dissesse algo, expus os meus congelantes motivos. Acabei sendo perdoada e virando querida de novo. Eu já sabia que brincar com água não é para os fracos.

 

Foto: Arina Krasnikova 

Este post foi escrito por: Britz Lopes

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