Trilha ao longo do Rio Tejo no Caminho de Dom Quixote
Marcio Fernandes – Desde ontem à noite estava com carência afetiva. Deixei o quarto um pouco desacorçoado, apesar de ser portador da Síndrome de Toledo. A patologia arrebata quem passa por esta cidade medieval única de Castilla-La Mancha, como me ensinou a querida Nélia Cristina Costa. Foi então que tudo mudou em régio café da manhã, pois havia bolo. Mergulhei o bicho na chávena de chocolate, na verdade três pedaços. Em seguida parti para queijo Manchego com pasta de marmelada, pão regado com molho de tomate da Almeria, suco de laranja puro e chá de folha de Tisana. Bolo altera tudo na minha vida e traz aquele poder do pensamento positivo.
Do nada, decidi que precisava fazer uma trilha grande para coroar de êxito aquele momento sensacional. Depois de alguma pesquisa no AllTrails, descobri que estava praticamente na porta de entrada do Caminho Natural do Tejo. O percurso circular que margeia esse lindo manancial possui 14,5 km e se destaca por trazer vistas deslumbrantes de uma Toledo pouco conhecida da turistada.
Comecei a trilha pleno de entusiasmo, lhaneza e decisão, quando na passarela da Ponte de Azarquiel fui vítima do ataque canino mais virulento a que um Fernandes já foi submetido desde que passamos a ocupar a Península Ibérica, no final da última Era Glacial. Susto grande e o pior foi o dono do bicho com cara de insatisfação mandando repetidos “pasa nada”.
Finalmente, consegui alcançar propriamente a trilha após chegar à Ponte de Alcântara, obra-prima da engenharia romana, reconstruída no século 10 e depois adornada com o brasão dos Reis Católicos, Isabel e Fernando, por quem sempre endereço especial consideração. Eu decidi andar 1,5 km no sentido oposto do Caminho do Tejo para apreciar o Parque de Safont e fotografar uma das dezenas de estações elevatórias que por séculos foram construídas no leito do Tejo para o aproveitamento do causal do rio em irrigação, força motora de moinhos e geração de energia elétrica.
Não era mesmo meu dia de paz com o reino animal. Na volta houve revolta ruidosa por parte de um grupo de aproximadamente 20 gansos engajados na lacração politicamente correta. A chuva fina que caía sobre o solo argiloso foi aos poucos tornando o terreno lamacento. Logo percebi o erro de ter trocado a bota impermeável por tênis comum. No mais, meu equipamento de trekking se mostrou super eficiente à condição ambiental de inverno.
Por conta de uma obra em andamento, o curso da trilha foi desviado para a margem da rodovia, com toda segurança possível, e veio a boa surpresa do dia: caminhar pela Rota de Dom Quixote, caminho que fiz de automóvel em 2005. Trata-se de uma adaptação material do percurso do fidalgo personagem de Cervantes nas terras Manchegas.
Após cruzar a ponte sobre o Arroyo La Degollada, o caminho sofreu uma elevação mais para fraca e trouxe a primeira visão panorâmica do Tejo a adornar a monumental Toledo. No vale profundo, saí novamente da rota para explorar o sítio arqueológico Cerro del Bú, com vestígios de ocupação desde a Idade do Bronze até o Califado de Córdoba, no século 10, quando os árabes ocupavam o Sul da Europa.
Em decorrência de extraordinário café da manhã duas horas antes, tanto no qualitativo quanto no quantitativo, não me preocupei em carregar provisões para a trilha. Foi outro erro capital, pois bateu uma fome sem precedente na metade dos quase 15 km percorridos. A distância de qualquer fonte de alimentação me fez apertar o passo e consumir de forma irresponsável as reservas de água, o que depois não foi problema, já que encontrei fonte vinda da montanha localizada a leste da minha posição.
Quase a alcançar a Ponte de São Martinho, na parte oeste de Toledo, me veio à memória Aos Pés da Cruz na voz inconfundível do grande Orlando Silva. Me lembrei do meu pai e interrompi a cantoria solitária para fazer pequena oração a ele. Tinha um pessoal fazendo tirolesa sobre o Tejo, mas não senti tentação alguma pela aventura. Logo apareceram alguns caminhantes em sentido contrário, sempre a mandar um hola cordial, tradicional cumprimento que os espanhóis te enviam no primeiro encontro.
Atravessei a Porta do Cambrón que dá entrada para o antigo Bairro Judaico de Toledo. Escolhi o caminho mais curto para chegar ao hotel, tomar banho demorado em água bem quente e espantar a gripe por conta da chuva que Dona Sônia, querida professora da 8ª Série, classificaria de abençoada e boa. Descansado da trilha e muerto de fome, não quis andar 900 metros para almoçar prometido rabo de toro. Acabei em restaurante chinês ao lado onde fiz sensacional alimentação de arroz e frango com amêndoas. Até o momento não houve nenhum registro de refluxo estomacal, apesar de não saber ao certo das condições do estabelecimento que tradicionalmente não pode ser considerado asseado.
Texto e Fotografias: Marcio Fernandes
É sempre divertido ler artigos de um amigo querido!
Muito obrigado, querido Daniel!
Tem um castelo bem bacana que pode ser visto fora das cercanias de Toledo. O detalhe é que é um albergue. Pelos menos era, quando estive nessa região no longínquo 1989
Américo, mochilar é bom demais da conta.
Sem esta fantástica Rota aqui vou eu achar um bolo fresco com café
Obrigada Caro Márcio Fernandes
Querida Lúcia, guarde um pedaço pra mim.
Que buenos lugares !!! Saludos Marcio