sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Trilha gelada nas montanhas da Patagônia

 

Marcio Fernandes – Era antigo o desejo de me aventurar pelas terras da Patagônia, destino desafiador para qualquer montanhista. O calor infernal e infinito do Brasil-Central foi a gota d’água para eu descolar uma passagem para a Argentina e sumir do mapa de Goiânia.

 

Depois de passar dois dias em Buenos Aires, segui para El Calafate, porta de entrada das montanhas patagônicas. Apesar da cidade ser inevitável por ter o aeroporto mais próximo para se alcançar El Chaltén, capital argentina do trekking, a experiência por lá foi a roubada mais expressiva nestes 30 anos de viagem mundo afora. Só turistada e excursões com guia, coisa que não faço nem para ganhar um pix de 500 mil dólares.

 

 

Passado o sufoco, eis que tomei rumo de El Chaltén em um ônibus de linha regular com itinerário que passa pela lendária Rota 40 em viagem de três horas. Praticamente todo o trajeto corta as terras planas, desabitadas e quase estéreis das estepes patagônicas. Notei na rodovia uma placa inútil que anunciava que dali até as Ilhas Malvinas restavam 876 quilômetros em sinal de recalque histórico por conta da guerra perdida em 1982 para o Reino Unido.

 

Na última hora de viagem, o ambiente mudou completamente e uma reta quilométrica expôs o Parque Nacional Los Glaciares e a imponência do Cerro Fitz Roy, montanha cujo ponto culminante atinge 3.405 metros de altitude. Ela estava linda me esperando, como uma noiva ao pé do altar toda coberta de neve.

 

 

Como cheguei tarde e morto de fome em El Chaltén, o primeiro dia foi mais para conhecer a região e definir qual seria a trilha escolhida entre as dezenas demarcadas. Aproveitei o fim de tarde para explorar os miradouros de Los Condores e de Las Águilas, além de buscar o sol que caía a oeste dentro da Cordilheira dos Andes. O altímetro e a bússola do aplicativo não funcionaram e eu fiquei sem umas referências essenciais.

 

Ontem, acordei com fome de montanha e fui fazer o circuito da trilha Laguna Capri. São teoricamente apenas quatro quilômetros da entrada do parque até lá, mas no solo a distância percorrida muda de conversa. Ao todo, andei 16,2 quilômetros desde o hotel. Os tais quatro km são só de subida sem trégua, com ganho de altitude de 359 metros. Já fiz coisa muito pior, mas estava longe dos 62 anos e tinha coração zero-bala.

 

 

Como não consegui alugar os bastões de caminhada, pus em prática a capacidade de improvisação com galho seco em forma de bengala. Ideal para dar no lombo de influencer excomungado. A trilha toda praticamente atravessa bosque frondoso, com exceção de uma parte com desfiladeiro exposto no Vale do Rio de las Vueltas. Ali você tem o primeiro contato visual panorâmico das montanhas geladas ao avistar o maciço rochoso do Cerro Elétrico. É alguma coisa apaixonante.

 

Apesar de ter saído bem cedo, a trilha estava bem concorrida. O pessoal do montanhismo é super cordial, solidário e leva o esporte a sério, mas sempre há exceções. A passagem é estreita e duas falsas louras, mais para gordinhas, paravam o tempo todo para fazer self prejudicando a progressão do pessoal.

 

 

Uma delas estava com perfume doce e aquilo foi me dando náusea de antipatia. Até que elas pararam um mochileiro japonês que vinha em direção contrária e perguntaram ao cara se já estava chegando na Laguna Capri. Ele calculou meia hora, mas logo depois intervim e mostrei que estava bem longe. Elas tomaram o rumo de volta para a cidade e desistiram da trilha para bem de todos.

 

Eu prometi para mim mesmo que não iria me comunicar em portuñol na viagem. Na trilha, encontrei um casal de Madrid e foi inevitável. Comecei a conversar em inglês com eles e a coisa não rendeu. Acabou que tive recorrer ao “duelo em quem duelo” do ex-presidente Collor e foi só alegria bilateral em prosa propositiva.

 

 

As florestas do parque estão com sinais claros de processo erosivo causado pela pressão da carga de neve que desce montanha abaixo com o degelo natural. Em certos trechos, a paisagem se parece com um bosque de árvores mortas a rastejar no solo como almas abatidas pela insensatez do desflorestamento.

 

Depois de alcançar a Laguna Capri, segui a trilha em direção da Laguna de Los Três, mas acabei voltando, pois não tinha comida nem carga de bateria suficiente para prosseguir com segurança. Mesmo assim, pude observar e fotografar o Cerro Fitz Roy de vários ângulos e até saí fora do traçado para chegar em mini lagoa que fazia contraste incrível com o céu azul.

 

 

Só houve dois pontos que puderam ser considerados negativos. O primeiro foi o suco de laranja de 48 horas fora da geladeira com sabor de plástico-bolha. O outro, a minha camiseta que marcava cinco dias sem ser trocada e, de certa forma, roubou o aroma silvestre das montanhas geladas da Patagônia.

 

Marcio Fernandes: texto e fotografias

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Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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2 comentários em "Trilha gelada nas montanhas da Patagônia"

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