sábado, 4 de outubro de 2025

Um amarra-cachorro em plena ocupação simulada após a nevasca

 

Marcio Fernandes – A noite ficou gelada por volta das 22 horas. Sensação térmica de 1 grau. 20 anos atrás eu viajava à Europa para usufruir do inverno, hoje a idade cobra um preço mais oneroso. O vento e o sol pálido do meio-dia me deixam meio desacorçoado.

 

Eu me lembro de sair nas ruas geladas de Madrid pleno de entusiasmo. Estive na Ucrânia em um dezembro no qual tudo na paisagem estava congelado. Uma vez, eu e amigos, fizemos uma longa viagem de automóvel pela Península Ibérica e os Perineus da França e Andorra só para apreciar a neve.

 

A pior temporada de frio foi em viagem de trem para a Áustria e Hungria, sob intensas nevascas, há exatamente 25 anos. Me lembro bem de nesta ocasião de meu amigo Demóstenes Torres nos levar para assistir, no suntuoso palácio da Ópera de Viena, ao espetáculo do Buena Vista Social Club com Compay Segundo no centro do palco.

 

Depois da apresentação, saímos para tomar chope gelado na cervejaria na qual o abominável Adolf Hitler fazia seus discursos antissemitas. A gente se divertiu muito com a visão das garçonetes ao trazer em duas mãos uma dezena de canecos de um litro.

 

Eu me recordo também das paisagens da Serra da Estrela, norte de Portugal, cobertas de gelo espesso e do lauto almoço que fizemos em Seia com seu casario lindo. Houve uma viagem em que eu estava na Sicília e nevou grosso em Corleone, um dia após o sol quente em Palermo.

 

Ao fazer a camihada de montanha da Alta Via 1, na soberania dos picos das Dolomitas (Alpes Italianos), num verão de agosto, na madrugada a temperatura desceu para zero grau dentro da minha barraca. Eu decidi ficar o tempo possível acordado para evitar a hipotemia em uma região de geleira, resquício da última glaciação.

 

Passei frio até no Alentejo, extremo sul de Portugal, famoso pelo clima abafado dos planaltos tênues e a escassez hídrica. Em Nova Orleans, onde fui estudar em um janeiro muito chuvoso, ia todos os dias em uma loja de discos para ouvir em cabine o Sting cantar English Man in New York. Depois saía pelas ruas do Bairro Francês com vontade inexplicável de chorar em um frio danado.

 

O relógio indica a aproximação da meia-noite e o termômetro aponta que no ambiente exterior está tudo abaixo de zero. Minhas canelas secas e meu corpo fraco de carnes dizem para os ossos que é hora de buscar um cobertor quente na cama. E a neve caindo em começo de outono em tempos de aquecimento global.

 

 

Deixei o Kosovo feliz por ter experimentado em uma semana todas as estações do ano: calor infernal, flores da primavera, folhas amarelas de plátano caídas no solo a anunciar o outono e o frio dolorido do inverno que me traz uma calma confortável.

 

Só a chuva incomoda, mas amanhã deverá haver bom tempo, pois estou bem longe da Galícia, noroeste da Espanha, terra de precipitações amazônicas, fruto dos ventos que vêm do Polo Norte e se miscigenam com a umidade do Oceano Atlântico.

 

Apesar do frio lá fora e aqui dentro, deixei Prizren com o coração quente a imaginar como deve ser rigoroso o sofrimento das pessoas do lugar no inverno que se aproxima. Acho que os camponeses fazem boa provisão de lenha, estoque de azeite, barricas cheias de vinho, centeio para fazer o pão e carnes defumadas suficientes para superar a necessidade de proteína.

 

O inverno rigoroso deve os fazer iguais, independente de serem muçulmanos ou cristãos. Acho que neste caso, as longas vestimentas das seguidoras radicais de Maomé fazem a diferença em matéria de proteção.

 

Também suponho como seria assistir a um casamento das noivas branquinhas, enquanto neva lá fora. Será que elas arrastam a aba dos vestidos sobre o chão gelado? Onde encontram flores para celebrar a feliz união do casal em época em que os solos estão rígidos de gelo e nada nasce nas estepes?

 

Britz Lopes, que eu chamo carinhosamente de Sururu, está com o nariz ibérico coberto de vermelho invernal. Vamos dormir na noite fria certos de que no retorno ao Brasil os dias serão feitos de arroz com feijão e a gente vai beber vinho no calorão de Goiânia.

 

Vou ter muita saudade do Kosovo e de certo guisado de músculos da perna de novilho. Estava muito bom o caldo espesso de cebola, o sabor de alho e a batata naquele frio.

 

Fui na vasta varanda do quarto me despedir de minarate branco de cúpula pontiaguda azulada e voltei imediatamente para o conforto quente do edredon pedindo a Deus que amanhã ele me dê céu azul para iluminar o fim da viagem.

 

Tenho a impressão de que o frio intenso, seguido de ampla nevasca, ocorrida ontem à noite, dá ânimo extra para a pessoa. Mais ou menos em comportamento inercial no calor, no inverno o sujeito acorda para as obrigações do trabalho e passa a executar de forma expedita as funções.

 

Pelo menos foi o que ocorreu na rodoviária e no interior do Vip Class, um ônibus super meia-boca que nos levou de Prizren para Shkoder (Albânia). Houve exatamente quatro verificações do passaporte e quatro dos bilhetes. Empatia e lhaneza a serviço da ocupação simulada.

 

A gordinha em trajes negros ao meu lado não parava de entrar no saco de Doritos sabor de amendoim. Na parada do almoço, comeu pratada de frango branco com arroz e salsicha, se serviu de pudim, e matou uma Coca-Cola zero de 600 ml.

 

Quase perdeu o ônibus, não fosse minha intervenção, e voltou a pescar os Doritos no saquinho. Depois diz que o problema é da balança e acha que vai solucionar a questão com duas horas por semana no pilates.

 

Descobri que ela é canhota por ter efetuado uma limpeza grande do salão com o fino polegar esquerdo. Primeiro, descolou material da parede nasal e em seguida concluiu o serviço com o dedo mínino.

 

Ato contínuo, depositou o resíduo pastoso no assento da frente. Diante dessa narrativa, caso ela te oferecesse um Dorito você aceitaria? O politicamente correto desse pessoal retardado da cultura woke americana proibiu a palavra “fat”, (gordo em inglês), que deve substituída por “full figured.” O que não faz a falta de serviço!

 

 

Ao chegar a Shkoder, imaginei que haveria uma rodoviária. O amarra-cachorro do motorista desceu apurado para pegar as mochilas no bagageiro e nos despachar. Fomos deixados na beira da estrada, a 4 km do centro da cidade. Comigo e Britz estavam uma australiana baixinha de sotaque chatíssimo e uma japa sardenta magrela, mas das canelas grossas com mochila de 60 litros.

 

Não demorou 10 minutos para um senhor em um automóvel Mercedes muito velho e sujo nos oferecer para levar ao centro ao custo de 10 euros. Fui no banco da frente e socorri a australiana e a japa.

 

 

Ele teve uma prosa cumprida comigo em albanês, acendeu um cigarro e foi fumando até o nosso destino com as janelas fechadas. Depois procurei no google a tradução de mensagem contida no tal ônibus Vip Class: “Viaje com os melhores.” Diante da qualidade do serviço apresentada, a partir de agora, só vou viajar com os piores e não quero mais ver nenhuma mesquita.

 

Marcio Fernandes é jornalista

Fotografias do autor

 

Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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