sábado, 7 de setembro de 2024

Um dia em quase 300 anos de Goiás e o remédio para um coração doente

 

Marcio Fernandes – Em 2027, a Cidade de Goiás vai completar 300 anos. Ao contrário do Brasil, que foi fundado em 1500, por aqui a gente ainda vai fazer o aniversário de três séculos. Imagino que será um acontecimento e tanto a celebração desta obra-prima da arquitetura colonial erguida pela engenharia portuguesa em um sertão muito distante do mar, de ambiente improvável e tecnologia adaptada. Consagrada Patrimônio Mundial pela Unesco em 2001 devido a singularidade da arquitetura vernacular, Goiás Velho está cada vez mais encantadora. Tem turismo, mas sem o maloqueirismo da turistada.

 

Havia muito tempo que eu não aparecia por aqui e ontem rolou um fim de tarde do qual eu estava precisando. Foi muito bom andar sozinho da ponte da Rua Hugo Ramos até a Igreja da Santa Bárbara a observar com cuidado o casario colonial por ruas e becos nos quais dificilmente o silêncio é quebrado. Por lá, quase nenhum retardado te ameaça com carro ou moto. Há lugares que tem faixa de pedestre. E o pessoal está começando a entender que faz bem para a saúde social respeitar as regras de mobilidade.

 

 

As ruas de pedra em formato oval ou de calçamento em bloco de concreto estão muito limpas e não se vê acúmulo de lixo em nenhum lugar. A sensação de segurança pública pode ser vista na tradição do vilaboense ir para a porta de casa tomar a fresca da tarde trazida pelo crepúsculo. Eles são no geral muito gentis. Cumprimentam a gente, dão segmento na conversa e até contam causos. Você percebe que as populações originárias estão felizes com a qualidade de vida da cidade. Conversei com um cara muito bacana sobre a camionete C10 1971 que ainda está no serviço e inteira. Não percebi aversão ao turista, mas também só vi gente de fora qualificada.

 

 

A dona Maria Vânia Rios Serra, 95 anos, professora de ciências física e química, me pediu para ajudá-la a atravessar a rua para alcançar a Travessa Ouro Fino. Tivemos uma palestra breve, mas muito instrutiva. Disse a ela que precisava fotografá-la para uma reportagem e que não tinha nada dessas bobagens de internet etc. A professora ficou toda prosa. Ganhei um abraço cheiroso e comecei a subir a ladeira até a Igreja da Santa Bárbara. Ao chegar lá, foi só coração robusto na subida dos 113 degraus da escada adicionais.

 

Praticamente perdi o melhor do pôr do sol pelo atraso de parar para fotografar o casario colonial, os muros compridos de adobe centenário e até um Dodge Fargo Anos 1940 estacionado em uma garagem depositária de uma raridade da engenharia mecânica americana. Na trave exterior da Igreja da Santa Bárbara, a contraluz da fotografia revelou um sino triste, meio caído de lado e cheio de saudosismo dos tempos do badalo. Vi também uma janela machucada pela decadência a refletir as janelas em frente de um azul soberbo.

 

 

Exatamente às 18 horas veio alta e abençoada Ave Maria proclamada pelo padre a proteger a cidade em serviço de alto falante. O céu já tinha ficado com aquela primeira coloração de azul cintilante quando eu me encontrei com uma casa de uma porta e uma janela. Alguma coisa me disse que ali é a tapera de um coração solitário. Por outro lado, na ladeira ao lado tem uma fila de uma dezena de casas coladas umas nas outras, a maioria colorida, e de um adensamento urbano que não deve ter nada de silêncio.

 

Descobri próximo da casa onde nasceu Pedro Ludovico Teixeira, fundador de Goiânia, um estabelecimento comercial especializado em ralo. Não existe uma ralada maior nas coronárias do que um coração partido. Em Zagreb há um museu destinado às decepções amorosas doídas. Têm objetos, cartas e principalmente frases dilacerantes que marcaram o fim de um amor que não tinha nada do que foi combinado. Eu acho que um camarada meu de Portobello deveria ir lá, doar ao acervo uma frase da paixão enganosa e depois escalar o Monte Roraima comigo.

 

 

Para quem diz que a Cidade de Goiás não gosta de turista precisa conhecer a eficiência do sistema de sinalização do Centro Histórico. Outra lenda urbana é de que não há rede de serviços. Tem de todo padrão, é compatível com a demanda da cidade e respeita a natureza local. Tenho o casarão da Anna só para mim e aproveito o vento frio que vem da porta aberta de quatro folhas para imaginar que estou na Serra Dourada olhando a via láctea com meu novo casaco azul de montanha e tomando um vinho chamado Coragem em honra do Supremo Tribunal Federal.

 

Marcio Fernandes: texto e fotografias

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Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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7 comentários em "Um dia em quase 300 anos de Goiás e o remédio para um coração doente"

  • Avatar Noemy Faria disse:

    Parabéns Marcinho! Belo e melancólico texto. Me senti caminhando solitária pelas ruas da nossa Goiás, terra que amo muito. ❤️❤️❤️❤️❤️

  • Avatar Maria Leda17063@gmail.com disse:

    Fabuloso texto parabéns Dr Márcio Fernandes!

  • Anna Paula Anna Paula disse:

    Fantástica a sua narrativa 👏👏👏👏 Amo Goiás e penso exatamente como voce 🫶

  • Avatar Heloisa Helena Fitzgerald disse:

    Que lindo conhecer essa cidade através de seus olhos.

  • Avatar Maria Amélia Alencar disse:

    Tb adoro Goiás velho e seus ares coloniais!

  • Avatar Chico disse:

    Acabei de ler sua poética leitura da velha e única cidade de Goiás, enquanto via do coreto a tarde azularanjada cair. Parabéns amigo!

  • Avatar Monica disse:

    ADOREI esse olhar sobre a cidade que há 14 anos adotei como refúgio do Rio de Janeiro e do mundo e que nos adotou!!! Nessa altura da vida, acho que daqui só saio se for para ir às pirâmides da Bósnia – a única coisa que ainda faz falta em meu currículo! Do contrário, só sigo caminho se for para pousar nas fraldas da Serra Dourada! E que assim seja!

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