Vai ter vindima na Estrada Senhora das Necessidades
Marcio Fernandes — Hoje o domingo acordou nebuloso, com um dia branco cheio de nuvens tristes. Imaginei que viria uma chuvarada de revirar o mundo debaixo d’água, mas nada aconteceu. Logo eu tomei prumo e saí sozinho para fazer uma trilha de média distância pela zona rural de Ponte da Barca no Alto Minho, Portugal. Ao todo, foram nove quilômetros de caminhada meio sem rumo em busca de estradas que cortam as freguesias (distritos no Brasil) da vila.
O primeiro trecho de aproximadamente três quilômetros foi percorrido na ecovia que margeia o Rio Lima até um ponto onde há uma estrutura de esportes náuticos, especialmente caiaques e stand up paddle. O Rio Lima é um caudal de águas nervosas. Para controlar as enchentes há várias barreiras de contenção que se transformam em cachoeiras e criam a montante vastas bacias como se fosse um manancial de águas paradas. Aparentemente, não tem grande profundidade, no entanto, mesmo no ambiente de nuvens cinzentas, o Lima não perde a tonalidade azul das águas de rara qualidade ambiental.
O Brasil tem orgulho de ser o maior depósito de água doce do planeta, mas o politicamente correto omite que 55% do esgoto doméstico gerado no bananal lulista é despejado sem tratamento nos mananciais do país. De acordo com o Instituto Trata Brasil, o maior centro de estudo de saneamento nacional, isto equivale a 5,2 bilhões de metros cúbicos por ano ou seis mil piscinas olímpicas por dia. Belém do Pará, sede da patacoada anunciada, chamada COP-30, tem um indicador de coleta de esgoto de 19,34%, dos quais apenas 27,51% são tratados.
O primeiro ponto de interesse deste trecho foi uma solitária vendedora de alho em trouxas muito bem-arrumadas que me permitiu fotografar os legumes. Só pediu educadamente para que ela não aparecesse na imagem. A ecovia tem uma sinalização perfeita e agrega vários totens com informações detalhadas da história e da geografia do ambiente em que se insere. Em um deles tomei conhecimento da Casa e Quinta da Boavista, erguida em 1642, e a Fonte Santa de Bravões, datada do século 18, cujas águas sulforosas até hoje guardam enorme reputação de fazer muito bem à pele, embora o aroma não seja algo que possa ser considerado muito agradável.
Como é domingo, a trilha estava relativamente ocupada por ciclistas de velocidade. Após a terceira passagem do pessoal, decidi que era na hora de encontrar rumo próprio para ficar sozinho e subi uma encosta de 84 metros de elevação para explorar a zona rural de Ponte da Barca. É incrível como cada propriedade de menos de mil metros de área é cultivada em regime de autossuficiência. Em quase todas florescem parreirais plenos de frutos à espera do momento certo para serem colhidos e transformados nos deliciosos vinhos verdes da região.
Em uma delas, encontrei uma extraordinária criação de galinhas de campo, no Brasil chamadas de galinhas caipiras, e logo veio a imaginação de que elas dariam um ensopado magnânimo naquela hora do almoço acompanhado de arroz branco, feijão de caldo e vasta salada.
Em outras casas são produzidos olivais que devem se converter em puro azeite extra virgem. Como minha provisão de água estava na metade da capacidade instalada, ao parar em frente a uma propriedade com criação de gansos e com duas vacas leiteiras de primeira linha, pedi socorro a uma bondosa senhora que prontamente encheu minhas duas garrafas com o líquido gelado vindo de fonte natural.
O suprimento me conferiu entusiasmo para avançar até o Mosteiro de São Sebastião dos Bravões, subir a Rua das Cerdeiras para, em seguida, aproveitar a inclinação negativa da Estrada Senhora das Necessidades para dar um andamento mais célere nas passadas, já que a fome era expressiva naquela altura do dia.
Para evitar a Rodovia N203, calculei que a Rua Lousal Fundo de Oleiros me conduziria em paralelo ao retorno a Ponte da Barca e por lá segui sempre a dar um boa tarde ao pessoal que me respondia com sincero bom dia. Em Portugal o marco entre o dia e a tarde para uma saudação é normalmente o horário do almoço.
Por tratar-se de domingo, presumi que a mesa seria servida um pouco mais para depois das 14 horas e passei adotar o cumprimento de acordo com a sistemática local. Andar a pé é a maneira mais instrutiva de conhecer qualquer região e nas minhas passadas descobri um costume do ambiente rural do Minho chamado desfolhada.
Estamos falando de uma tradição centenária de reunir as comunidades locais para promover a retirada da palha do milho colhido e dar o tratamento adequado para a estocagem nos espigueiros. Na ocasião são promovidas muitas festanças que abrem oportunidades a namoros que muitas vezes serão convertidos em casamentos. Eu vou procurar uma desfolhada mais para conhecer a natureza do trabalho comunitário, no entanto estou mesmo interessado em beber um vinho Alvarinho que será produzido após a colheita dos vinhedos da Estrada da Senhora das Necessidades.
Marcio Fernandes é jornalista