sábado, 27 de julho de 2024

A enfermeira de Kiev

 

Marcio Fernandes  –  Dona Alla Lelitscewa da Bela Cruz, 91 anos, era uma imigrante diferenciada entre as dezenas de estrangeiros que habitavam Campinas, bairro de Goiânia, na década de 1970. Nascida em Kiev, sobrevivente da Segunda-Guerra Mundial, aos 13 anos deixou a Ucrânia. Era questão de vida ou morte seguir na direção da retirada das tropas nazistas da União Soviética. O Exército Vermelho se aproximava. Sua mãe, descendente de alemães, por “livre e espontânea vontade” entendeu que o melhor era emigrar. A ucraniana morou quatro anos na Alemanha. Depois foi de navio por águas turbulentas para Venezuela. Há 68 anos vive no Brasil.

O pai era militar, mas não pertencia ao partido comunista. Morreu na guerra. Dona Alla só ficou sabendo em 1956, já no Brasil. De clara memória, comenta que a Rússia era o melhor lugar para uma estudante viver nos tempos de Stalin. Ainda que chore bastante, faz questão de se manter informada da guerra da Rússia contra a Ucrânia. Lembra que possui muitos parentes em Kiev e Irpin. Chega a se arrepiar de saudade dos tempos em que caminhava nos campos da paisagem exuberante que preenchia as duas cidades. Se hoje Kiev tivesse a tranquilidade que existe em Campinas, dona Alla não hesitaria em voltar a viver na Ucrânia.

Em casa, lembra Tânia Lelitscewa da Bela Cruz, do nada a mãe abandonava o português fluente e começava a falar em russo com os filhos. Às vezes parecia rude o tom grave e alto da voz daquela senhora corpulenta e de olhos azuis penetrantes. Era só o modo dominante do eslavo se comunicar. Mulher impositiva, mãe de sete filhos, absolutamente caucasiana e de personalidade distinta, ela realmente impressionava.

Nós morávamos em frente à casa de dona Alla e do senhor Manoel da Bela Cruz Sobrinho, engenheiro culto e brilhante. A enfermeira cuidou da minha avó, Carlota de Melo, por décadas. Sabia aplicar quase indolor injeção de Benzetacil, ainda que faltava puxar minha orelha para que eu sossegasse. Poucas pessoas tiveram o privilégio de terem sido cuidados por essa carinhosa enfermeira de Kiev. Ela vive com muita disposição, continua bastante brava, e concedeu esta entrevista exclusiva à Bybritznews.

 

Bbnews entrevista – Por que a senhora deixou Kiev décadas atrás e veio viver no Brasil?

Alla – Foi por causa da guerra com os alemães. Ou saía ou morria lá. Como os russos estavam entrando, tivemos de sair. Então foi nesse período. Eu emigrei da Rússia (a Ucrânia pertenceu à União Soviética de 1922 a 1991) de livre e espontânea vontade, junto com mamãe, que era descendente de alemães. Então pra nós, naquele momento, era melhor sair com os alemães. Fomos morar na Alemanha, de 1943 a 47; depois fomos para a Venezuela. Eu já era casada. Minha mãe e o resto da família ficaram na Alemanha.

Bbnews entrevista – O que a senhora se lembra da Segunda-Guerra Mundial?

Alla – Tudinho. Até da janela que se quebrou em estilhaços e despencou em cima de mim, durante um bombardeio enquanto esperávamos para ir embarcar. Mas eu me salvei. Um caco fincou na minha perna. E só.

Bbnews entrevista – Quando acabou a guerra, a senhora dizia que ficou assustada…

Alla – Isso foi Rude, nosso vizinho alemão, que falou. Ele tinha 4 anos de idade e disse: “Mãe, e agora, como vamos ficar sem guerra?” Ele havia nascido naquele ambiente.

Bbnews entrevista – O que foi pior: a ocupação soviética ou nazista na Ucrânia?

Alla – Eu só estive lá durante a ocupação alemã. Quando os alemães saíram, nós saímos também.

 

Bbnews entrevista – Durante a ocupação soviética vocês se adaptaram…

Alla – Não tinha nada que adaptar, eu nasci lá. Pra mim a Rússia era o melhor país para se viver, porque a gente recebia dinheiro para estudar em qualquer faculdade que quiséssemos. Havia um salário para os estudantes universitários. Então, a época do Stálin, foi muito boa para os estudantes. Para os velhos nem tanto – porque eles matavam ou davam sumiço de vez. Velho não servia para mais nada.

Bbnews entrevista – E a comida? 

Alla – A comida era aos quilos, tecidos, aos metros. Isso eles que determinavam as quantidades que a gente podia comprar anualmente.

Bbnews entrevista – Por que saíram da Alemanha, foram para a Venezuela e depois vieram para o Brasil?

Alla – Estávamos nesses países como imigrantes e tínhamos de desconfiar que naquela condição havia um limite de tempo para a permanência. É da nossa natureza, sabíamos que estava passando da hora de nos mudar dali. Entendíamos que o país já tinha dado o que tinha de dar. E estavam oferecendo viagens para a América do Sul, para povoar o continente. Aí cada país ofereceu as suas condições para receber esses refugiados: Venezuela, Brasil e também o Canadá, que levou muita gente.

Bbnews entrevista – Como foi a viagem da Alemanha para a Venezuela?

Alla – Nós entramos no navio um dia após uma grande tempestade, então, pra nós, não houve muito estrago, mas o barco balançava muito. As ondas ainda eram enormes, da altura do navio. Eu nunca deixei de comer, mas muitas pessoas deixaram porque embrulhava o estômago.

Bbnews entrevista – E a senhora e seu marido, Miguel, escolheram a Venezuela?

Alla – Sim, foi o primeiro país que ofereceu e aceitamos.

Bbnews entrevista – Por que a senhora saiu da Venezuela e veio para o Brasil?

Alla – Eu estava casada lá, mas o casamento acabou e eu não tinha mais nada o que fazer lá. Os meus parentes já estavam todos aqui no Brasil. Peguei um avião e vim.

Bbnews entrevista – A senhora alguma vez pensou em fazer o caminho de volta para a Ucrânia?

Alla – Depois da Segunda-Guerra eu tive muita vontade de voltar para Kiev, nossa! Mas minha mãe, por ter ascendência alemã, não podia retornar.

Bbnews entrevista – A senhora ainda tem parentes em Kiev?

Alla – Lógico, os meus primos estão todos lá, tadinhos. E tem também os irmãos do papai. Em Irpin estão os parentes da minha mãe.

Bbnews entrevista – Como a senhora se sente assistindo mais um guerra na Ucrânia?

Alla – Eu estou muito triste. Choro sempre que ouço as notícias.

Bbnews entrevista – Quais as melhores lembranças que a senhora tem da Ucrânia?

Alla – As minhas andanças. Eu ia a pé de Kiev a Irpin na maior folga. Era muito gostoso. São 24 quilômetros, as cidades são praticamente ligadas. A paisagem era linda, natureza exuberante. Irpin tinha outro nome que significava “o local para onde as pessoas iam recuperar as forças quando se sentiam esgotadas”. Até arrepiei de saudades agora.

Bbnews entrevista – Existe algum lugar melhor para se viver do que a Campininha?

Alla – Deixe-me falar. Se lá houvesse essa tranquilidade, eu preferia voltar. Mas é aqui que a minha família está, desde 1954, com filhos, netos e bisnetos.

 

Marcio Fernandes é jornalista

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Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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12 comentários em "A enfermeira de Kiev"

  • Avatar Claudia Luiza Cruz disse:

    Parabéns pela reportagem. Retratou de forma real a vida de dona Alla minha sogra, que realmente é uma mulher única. Mulher acolhedora, sincera e que cativa a todos.

  • Avatar Janeth Luiza Sampsio disse:

    Adorei a matéria! Muito justo a D Alla receber essa linda homenagem. Relatos de emigrantes do passado que hoje com a guerra acontecem a todo momento. Dona Alla, amiga de longas datas, tem a minha admiração como religiosa, enfermeira, mãe, avó, bisavó, e AMIGA. Mulher forte, amável, e extremamente preocupada com as pessoas… sempre que a encontro, ela pergunta não só como eu estou?! mas tbm pelos meus pais, meus filhos, meu marido… é incrível o carinho q ela tem com o próximo!

  • Avatar VALTENIRA FERREIRA disse:

    Reportagem fantástica!!! Grande mulher a Dona Alla. Neste mês que homenageamos as mulheres não poderia deixar de dizer o quanto ela é especial, um exemplo a ser seguido!!!

  • Avatar Ariane L. da Bela Cruz disse:

    Excelente reportagem, não só por ser minha mãe e saber toda a história aqui contada por ela, mas, principalmente por ver essa guerreira tendo que reviver tudo novamente o que pensávamos que ficaria somente nos livros de História ou no passado daqueles que viveram esse pesadelo. Mulher linda, forte. Meu eterno amor🥰

  • Avatar Hulda Morais disse:

    Excelente reportagem . Mulher forte e corajosa .

  • Muito especial essa entrevista imagino a emocao em reportar certas passagens, Deus proteja D. Alla e seus familiares que la se encontram. Meu pai foi para a 2a guerra mundial, foi pra Italia e por la ficou 1 bom tempo. Quando criancas nada melhor que escutar as historias de meu pai durante os passeios ou nas viagens de ferias.
    A criancada adorava escutar as historias incriveis. meu Pai meu HEROI!!!

  • Avatar Luciola Prado Silva disse:

    Entrevista incrível! Dona Alla uma mulher formidável, amada por todos!

  • Avatar Orlando Noleto Costa disse:

    História de vida que deve ser compartilhada para que todos nós possamos enxergar com mais clareza a realidade vivida por um povo em guerra. Me comoveu em demasia e o que mais me tocou foi o relato sobre o desprezo e o tratamento dispensado aos idosos…

  • Avatar LUCIANE Prado disse:

    Parabéns pela excelente entrevista com dona Alla, figura presente e amada na Campininha, Os seus filhos eram os mais lindos da região, Quando criança, eu a admirava e ao mesmo tempo a temia, pois era doce, mas muito brava quando aprontávamos. Sempre pronta a servir. Com ela aprendi a dizer: Benza a Deus!, sempre que alguém elogiava minhas filhas, ela dizia que era para retirar os Quebrantos! E deu certo 😍😍😍😍

  • Avatar Priscilla Martins disse:

    Linda minha tia ❤️ Uma história emocionante.

  • Avatar Jackeline Sousa disse:

    Minha madrinha, que orgulho poder ser afilhada de uma mulher tão espetacular 😍, uma mulher guerreira e vencedora, venceu tudo que pôde vencer e que Deus permitiu que vencesse e nós que temos o privilégio de conviver com esse exemplo de pessoa, só temos que agradecer 🙏 amo muito ❤️

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