A lição do tomate
Chegamos à estação de trem da gelada Luxemburgo na noite de 28 de janeiro daquele insensato 2020. A nossa política econômica de só pagar transporte público foi violada por causa do vento cortante e da escassez de ônibus àquela hora avançada.
Alcançamos o simpático e acolhedor hotel de táxi – desaforando o euro e o seu custo para os mortais tupiniquins. Eu e minha amiga, a chef de cozinha Eliene Cinquetti, fizemos check-in e fomos logo garantir uma pasta quente com queijo extra no restaurante do espaço – quentinho como colo de mãe, com lareira e tudo. Como um vinho só não bastava, compramos algumas outras garrafas e nos dirigimos para um anexo onde podíamos sentir o corte do vento; afinal, paguei pelo inverno que não tenho aqui para revitalizar luvas, cachecóis, botas, meias e afins.
Conversadeiras que somos, já meio altas e chegadas a novas amizades, atraímos um casal belga para a nossa tenda e dele nos tornamos as melhores amigas da era sem-corona – embora ele já estivesse passeando pelas redondezas. Assuntos: viagem, família, planos, bebidas, comidas. Neste último item, Eliane, chef de um restaurante num clube privado em Palma de Mallorca, dominou.
A mulher, que trabalha com apenas mais uma funcionária e atende cerca de 50 pessoas todos os 7 dias da semana – de abril a novembro –, com pratos elaborados e ingredientes pinçados a dedo, me surpreendeu, apesar de já conhecê-la há décadas. Contou que um paquera a convidara para morar na Córsega, ilha francesa, e plantar tomates. “Mas eu odeio tomates!”, disse ela afugentando-o. Meu mundo desabou.
Como logo ela, que três vezes por semana dirige 30 quilômetros seu BMW vintage conversível, com estofado vermelho desgastado pelo tempo, para comprar os melhores tomates das Baleares, pode odiar o delicioso fruto? A hora do espanto não terminaria ali. O jovem casal, cujos nomes não me lembrarei jamais, declarou que o tomate é não grato em casa, pois o filho, que havia ficado com a avó materna, também o detestava.
Era eu de madrugada, num país estranho, com frio, poucos euros, vinho acabando, numa mesa com três “tomatoes-haters” e mais um outro à distância. De novo: como a Eliane chef viaja tanto para pagar 10 euros no quilo daqueles tomatões da ilha – uns vermelhos, outros alaranjados, e os exóticos negros, doces como cana de açúcar, robustos e elegantes, sem alimentar paixão?
Simples, ela não gosta, mas respeita os que gostam e os prepara à moda mais simples, como deve ser a culinária requintada: vão para a mesa de seus clientes em forma de carpaccio, com a cebola adocicada mallorquina, branca de doer, que na fase madura lembra adereço das cabeças da ala de baianas da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel; mais manjericão, azeite bom, às vezes uma burrata no meio.
A noite acabou em decepção profunda, mas admiração dobrada por esta chef que, sem querer, deixou uma lição: gosto é gosto. Cada um tem o seu e o dos outros deve ser respeitado. E isso nada tem a ver com preferências políticas ou sexuais, mas com o delicado, difícil e inteligente exercício de fazer o seu melhor para ser alguém que valha a pena estar nesse mundo.
Foto tomates: Rimene Amaral
Foto Eliane: Britz Lopes