sábado, 27 de julho de 2024

A Mãe Rússia não deixa a Ucrânia sorrir

Como ocorre no Brasil, a fila da Ucrânia não anda. Vinte anos atrás, o país estava fragmentado entre pró e anti-Rússia. Na fissura ocidental existia desejo preponderante de integrar-se ao Bloco Europeu. Em direção ao Oriente, vontade minoritária de ser protetorado da Mãe Rússia. A Ucrânia experimentou o que houve de mais horrendo no século 20. De celeiro do Leste Europeu, 3.9 milhões de ucranianos morreram de fome em três anos por conta da genial ideia das fazendas coletivas de Stálin. Houve muitos casos de canibalismo. Depois foram varridos pela ocupação alemã na Segunda Guerra. Hitler via na Ucrânia posição estratégia à consolidação do Espaço Vital. Território perfeito à escravização dos eslavos e ao extermínio dos judeus. Terminada a guerra, voltou à tutela comunista, iniciada em 1922. Conserva na frágil independência a herança dos domínios soviético e nazista. Ameaça substituída pelas ambições expansionistas de Vladimir Putin.

O desembarque no Aeroporto de Kiev foi meio estranho. A infraestrutura instalada dava a sensação de estar em filme preto e branco de suspense no ambiente congelado da Cortina de Ferro dos anos 1960. Imagem da decadência de um centro de tecnologia aeronáutica de ponta. Mas as coisas funcionavam. Era 4 de dezembro, inverno pleno, sem menor sinal do aquecimento global na região. Nenhuma saudade dos trópicos ainda que a temperatura na capital ucraniana estivesse 30 graus abaixo de zero. Fui a Ucrânia, juntamente com o geólogo e jornalista, Luiz Gravatá, a convite do embaixador Hélder Martins de Moraes. Cearense de humor e cultura refinados, apaixonado pelas eslavas de origem e hábil diplomata.

 

O embaixador Hélder Martins de Moraes com o jornalista Luiz Gravatá

Hélder negociou, no final do Governo FHC, o tratado de cooperação aeroespacial entre Brasil e Ucrânia. Lula assinou o documento, criou uma estatal e o projeto morreu em 2015 sem resultado. O tratado era vantajoso para o País por operar e transferir tecnologia de lançamento de satélites. A opção foi apostar no fracasso do Centro de Lançamento de Alcântara (MA), hoje sob soberania americana. Fomos a Ucrânia para cobrir a abertura de exposição dos 90 anos de Oscar Niemayer e à inauguração de biblioteca em homenagem a Clarice Lispector, em Chechelnyk, cidade de nascimento da escritora judia ucraniana brasileira. Eu deixei de comparecer por achar que seria roubada. Muito frio, longa distância e meus problemas de andar de carro.

Para entrar na Zona de Exclusão de 30 quilômetros da usina nuclear de Chernobyl, que explodiu em 1986, era necessária autorização do alto escalão da burocracia local. Consegui o carimbo, mas tinha voo marcado, e acabei por perder grande oportunidade. Vinte anos atrás o Museu Nacional de Chernobyl era todo informado em cirílico. Você entendia a mensagem só pelas imagens da trágica negligência soviética. Para se ter ideia da lambança, tentaram esconder a extensão do desastre até do presidente Mikhail Gorbachev. A Suécia deu o primeiro alerta e depois os soviéticos ficaram sabendo das coisas pela rádio inimiga BBC.

 

Homenagem a Clarice Lispector 

À época, para as ucranianas, qualquer estrangeiro era bem-vindo desde que as tirassem do país. Ainda que fossem morar em Itapirapuã (GO). As nossas visitas por Kiev foram guiadas por funcionário da embaixada, ucraniano antiocidental. Fizemos passeios instrutivos pelos monumentos da Era Soviética. É absolutamente espetacular o Complexo Memorial da Segunda Guerra, bem como controversa estátua da Mãe Pátria, com altura de 102 metros desde a base em estrutura de 650 toneladas. A imponência da imensa eslava, para maioria dos ucranianos, representa aviso permanente do perigo de Moscou. Em tom sarcástico, outro funcionário da embaixada, pró-ocidente, quis saber das minhas impressões do monumento. Achei meio cafona e horripilante. O cara comentou que não havia orçamento para demoli-la. A prioridade do momento era conseguir 2 bilhões de dólares para reforçar sistema de segurança de Chernobyl.

Quando conheci Kiev, o centro histórico, conservado, era composto de edifícios art nouveau bastante singulares. Muitas esplêndidas catedrais e monastérios em estilo bizantino. É claro, o horror do desenho racionalista da arquitetura bolchevique. Havia mercado de pulgas subterrâneo, com bastante antiguidade barata e dezenas de barracas a oferecer CD’s e DVD’s pirateados. Encontramos alguma coisa do Tom Jobim. Nada de dupla caipira foi visto naquele universo de contrafação. Não espere sorriso fácil do povo ucraniano, especialmente no inverno. São discretos e desconfiados. Eu descolei resfriado polar. Fui tratado por Seu Luiz, velho moçambicano que Hélder trouxe para assessorá-lo na capital da Ucrânia, após deixar o posto de embaixador na ex-colônia portuguesa. Seu Luiz me confidenciou que, fora da embaixada, ninguém se comunicava com ele por ser negro. Mesmo no movimentado metrô de Kiev.

O ícone bizantino, pintado sobre restos de janela

Minha espontânea capacidade de dar bom dia a cavalo foi marcante e pouco diplomática em jantar numa casa de espetáculo que apresentava espécie de teatro de revista. A plateia veio abaixo quando loira de 1,85 metro, tão linda como Maria Sharapova, deixou cair o vestido e se mostrou em anágua e combinação. Eu estava em conversa positiva com empresários ucranianos, interessados nas oportunidades lúdicas de investimento no carnaval do Rio de Janeiro. Comentei que a Ucrânia tinha algo a ver com o Brasil no posicionamento próximo dos altos indicadores de corrupção.

Foi constrangedor, o embaixador ficou meio puto, mas na saída de Kiev veio o sabor das pequenas vinganças. Descobri que pelo então módico pagamento de 100 dólares, você poderia embarcar pela sala VIP, sem se submeter ao tedioso e inútil interrogatório do serviço de imigração. Jeitinho ucraniano oficialmente tributado. Trouxe de Kiev ícone bizantino centenário. Gravatá se irritou por eu ter barganhado o preço em longa negociação. Ainda assisti, em noite escura, entusiasmada celebração do Hanukkah por descendentes de judeus ortodoxos que escaparam do Holocausto. Em minha cabeça ficou imagem da Mãe Rússia, mulher que não deixa o povo ucraniano sorrir.

O jornalista Marcio Fernandes

Fotos: Luiz Gravatá

 

 

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Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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2 comentários em "A Mãe Rússia não deixa a Ucrânia sorrir"

  • Avatar Noemy Faria disse:

    Sempre me delicio com o texto limpo e a perfeita colocação dos fatos, mesmo que dolorosos, narrados por Márcio Fernandes ( o nosso Marcinho).
    Ficaria lendo por horas a fio.
    Obrigada por nos presentear com seus escritos. Te amo!

  • Marcelo Melo Marcelo Melo disse:

    Márcio transcende o atual. A essencialidade é atemporal.

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