A memória do golpe está só nos livros
Cecília Aires — Tinha 10 anos e cursava o extinto primário em colégio de freiras católicas em Araguari (MG) quando eclodiu o golpe de 1964. Rezar fazia parte do currículo escolar e as beatas exigiam orações para a vitória da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, o movimento civil de apoio à ação militar. Os estudantes percebiam que o País estava em perigo, mas não entendiam qual era o mal, o demônio que nos assombrava. Era a inclinação comunista do governo deposto, diziam na época.
Após 60 anos a lembrança do golpe não é nítida, a memória é vaga, as reminiscências são poucas, e vão se apagando na memória com o passar do tempo. Na década de 70, já morando e estudando no interior de Goiás, percebia que os ecos dos protestos contra a ditadura chegavam de forma esparsa e rara. O rádio e a televisão, ainda incipiente, praticamente não registravam nada sobre o assunto no Estado, pois foram solidários ao golpe.
Na metade da década de 70, cursando a UFG, em Goiânia, percebi que a calmaria era aparente. Os estudantes mobilizavam-se, panfletos corriam de mãos em mãos pregando “Abaixo a Ditadura”. Havia também a resistência política no antigo MDB (depois transformado em PMDB), onde líderes com mandatos foram cassados e perseguidos. Os partidos comunistas existiam em Goiás, mas com pouca penetração.
Aos 29 anos tive a chance e a satisfação de votar pela primeira vez para governador. Já trabalhando na imprensa local, acompanhei de perto a movimentação dos candidatos e do eleitorado. Todos entusiasmados para encerrar página negra na história do País. O resultado deu vitória a um político cassado pelo golpe, Iris Rezende Machado. Dois anos depois, em 1984, surgiu o movimento das Diretas Já que pregava a eleição para presidente da República.
Um ano após o golpe, em 1965, foram realizadas as últimas eleições para governador. O vencedor em Goiás foi Otávio Lage de Siqueira. Depois disso, os pleitos para governos estaduais foram suprimidos durante longos e tenebrosos 17 anos. A primeira eleição presidencial após o golpe só ocorreu em 1989, após interregno de 25 anos.
A redemocratização, que enterrou o golpe, enfrentou águas turvas e turbulentas, com a morte de presidente escolhido pelo Congresso, alta inflação, baixo crescimento econômico e problemas políticos diversos. Depois, o impeachment de dois presidentes eleitos. Mas a rota democrática não deixou de ser trilhada. A realização de eleições livres e diretas foi consagrada. O movimento avançou com a adoção das urnas eletrônicas.
A maioria do eleitorado atual nem se lembra do golpe. É formado por jovens. Precisa se informar sobre o episódio nos livros e pela imprensa. O presidente Lula, que tem 77 anos, disse recentemente que tinha 17 anos na época do golpe. Segundo o presidente petista, “não adianta ficar remoendo o passado”. A data não deve ser comemorada nem criticada nos quartéis, segundo ele.
Em obras como “Brasil, de Getúlio a Castelo”, de Thomas Skidmore, “Os militares no Poder”, do meu padrinho de turma de formandos o imortal Carlos Castelo Branco, “Brasil Nunca Mais”, organizado por dom Evaristo Arns, rabino Henry Sobel e o presbiteriano Jaime Wright sobre repressão e tortura, “Batismo de Sangue”, do Frei Betto, “1968 O Ano Que Não Terminou”, de Zuenir Ventura, e o “O menino que a ditadura matou”, do goiano Renato Dias, sobre o desaparecimento do irmão Marco Antônio Dias Batista, aos 16 anos, é possível conhecer um pouco da história do golpe.
Em outras palavras: o conhecimento do golpe de 64 está nos livros diversos e na memória de poucos. Só quem tem mais de 80 anos tem lembrança mais viva do momento. Até os generais do Exército não estão mais lá. Eles aposentam-se cedo, com muitos benefícios e estão na caserna há tempos.
Até a última eleição presidencial, a palavra golpe tinha saído da moda. Era usada mais como sinônimo de crime financeiro pela internet. Mas as estripulias do Bolsonaro trouxeram o golpe para o vocabulário e o noticiário. Ele teve tempo de articular e desenhar “modelo” do golpe. Na hora H quando a bomba deveria explodir, não obteve o apoio militar que esperava. O apoio popular já tinha perdido na eleição.
Como disse o presidente americano Biden no último discurso feito à Nação, perante o Congresso do EUA, não se deve amar o País apenas quando se ganha a eleição.
Replicar golpe de 60 anos atrás é coisa de saudosista, uma farsa, ou comédia. Não podemos ser coniventes com golpes, vindos da direita ou da esquerda, pois sempre chegam para distorcer a realidade, o que é pior, o resultado eleitoral, marca registrada de uma democracia.
Post escrito por Cecília Aires, jornalista
Cecilia, minha amiga petista, você está sumida! Um grande abraço!
Excelente texto! Muito obrigado, Cecília!
Excelente texto. O livro, OS CARBONÁRIOS, do saudoso Alfredo Sirkis, retrata muito bem a resistência da classe estudantil à Ditadura.
Tem razão, Waldyr. O livro do Sirkis é muito bom mesmo.
Parabéns, minha amiga Cecília! Seu texto é excelente e me fez recordar o medo que passei com os rasantes dos aviões e a gritaria do povo. Sem falar na morte da vó do então governador Mauro Borges que, se não me engano, ocorreu no mesmo dia da Revolução. Ela morava na Avenida Tocantins, quase em frente da minha casa.
Parabéns pelo texto, Cecília. Relembrar o passado que tivemos o privilégio de ter participado é muito importante, ainda que sem muitas informações naquele momento, e relatá-lo é necessário. É uma pena que não tivemos oportunidade de discutir política na escola e nem na Universidade, que sempre limitou os nossos espaços e foi parcial na orientação quanto aos estudos e debates. Tudo muito superficial, sem aprofundar e ter mais opiniões. Ficou um vazio.