sábado, 27 de julho de 2024

A neve como penitência

 

O brasileiro se desespera em Gramado (RS) quando neva. São dois dias de emocionante sensação europeia. A neve como conquista. Ao conhecer o verdadeiro inverno no Velho Mundo, o nacional consagra encontro definitivo com os valores ocidentais do Hemisfério Norte. Mas a neve é um perrengue em quase todos os sentidos operacionais para residentes e turistas que transitam pelas partes mais frias do planeta. Ver a neve é alguma coisa fascinante. Experimentar situações de nevasca ou de paisagens congeladas em uma estrada vicinal de montanha exige algum manejo e muita reza. Especialmente para nós, nascidos e criados entre bananeiras e canaviais.

 

 

No final de dezembro de 2005, eu, Britz Lopes, Marcelo Franco e namorada fizemos viagem não exatamente planejada para ver a bem-vinda neve. A gente começou em Sevilha, Espanha. Tinha objetivo de alcançar o País Basco para chegar a Bordeaux, França. Haveria de ter neve pelo caminho. A esperança era grande de apreciar as muralhas de Ávila cobertas de gelo. Apesar de todas condições meteorológicas favoráveis, não aconteceu. O Marcelinho decidiu que eu era o problema, “o abominável espanta neve.” Mas ela veio antes do imaginado por conta de situação não convencional. Uma integrante do grupo teve indisposição gástrica por conta de paella de má procedência. Passou a primeira noite da viagem no Hospital Virgen Macarena, levada na maca do SAMU andaluz.

 

 

 

Saúde restabelecida, eu arrumei uma confusão com o proprietário do hotel e decidimos deixar Sevilha em direção a Granada. Era véspera de ano novo quando pegamos pôr do sol na Sierra Nevada. Observar os picos da imensa montanha coberta de neve alta foi extraordinário. O problema é que não havia acomodação disponível e a noite trouxe vento congelante. Descemos a serra para encontrar hotel em Granada. Foi fácil! Eu fui estacionar o carro e simplesmente não sabia o endereço hotel. A roubada foi superada por lauto jantar de ano novo no Restaurante Horno de Santiago. Vinho até madrugada longa. Menu degustação que ficou entre os pratos das melhores lembranças.

 

No caminho até a fronteira da Espanha com a França, passamos por vários trechos da Rota de Dom Quixote. Trata-se de um roteiro turístico desenhado para materializar o ambiente em que se passaram as aventuras do cavaleiro da triste figura pelos pueblos, moinhos e campos de Castilla-La Mancha. Em 2005 foram celebrados os 400 anos da publicação da obra de Miguel de Cervantes. A Espanha estava contaminada de orgulho cultural. Fomos dar nossa contribuição nos moinhos de Consuegra. Era tarde fria. Abrimos o vinho, sem nada de alimentação. Na hora de servir os copos de plástico, um vento robusto soprou para longe um Rioja qualificado.

 

 

Naquela altura, o Marcelinho não era esse enófilo consagrado de reconhecida modéstia. A passagem por Bordeaux não teve nada de degustação, visita à adega, colóquios abrangentes sobre safras ou percepções diferenciadas, como o aroma dos solos de Médoc. Por outro lado, além de beber vinho a esmo partimos para o exaurimento das possibilidades do traçado urbano da monumental Bordeaux, apesar da chuva e nada de neve. Foi então que veio a grande ideia de ir a Font-Romeu. Por ser uma estação de esqui e estarmos no inverno, certamente ela estaria presente nos vales dos Pireneus. Como a gente não tinha GPS, o mapa era nosso guia e nos levou até Foix, antigo Condado na confluência de dois rios puramente azuis. Neve mesmo, só na paisagem distante da nossa próxima parada.

 

Em Font-Romeu não havia muito o que fazer. Ninguém estava disposto a esquiar, além da desqualificação de beber champanhe no quarto do hotel em copo de whisky. Felicidade grande dos casais em harmonia íntima e bilateral a apreciar a não planejada e querida neve. O entusiasmo venceu e foi péssimo conselheiro. Decidimos cruzar os Pirineus Orientais por estrada vicinal em direção a Andorra. Eram só 76 quilômetros de neve abundante por todos os lados. Aquele espetáculo da natureza longe do aquecimento global. Só que a rodovia era muito sinuosa, em constante ganho de altitude até os 2,6 mil metros acima do nível do mar. Asfalto escorregadio em espaço rural isolado.

 

 

À esquerda, montanhas escarpadas carregadas de gelo. No lado oposto, vale lindo precedido de espetacular abismo. Eu era ateu e dirigia o veículo, com a Britz tensa e pedindo para andar mais devagar. A tagarela e divertida namorada do Marcelo não dava um pio. No banco do passageiro veio a nossa salvação. Marcelinho iniciou sussurro de um Pai Nosso. A oração foi repetida e cresceu em intensidade vocal até a superação da penitência. São e salvos, em Andorra fomos presenteados pela paisagem nevada mais linda da viagem. Depois foi moleza chegar a Barcelona. Eu e Marcelo brigamos. Voltamos a ser amigos para sempre e terminamos a viagem nas deliciosas ruas de Madrid de Las Letras entre tapas e vinhos.

 

Marcio Fernandes é jornalista

Fotos: Marcio Fernandes

 

 

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Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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