sábado, 27 de julho de 2024

A soberania do carro no País da impunidade

Prioridade nas ruas e nas calçadas

 

Marcio Fernandes — Caso fosse perguntada qual é a síntese do atraso brasileiro, miséria, corrupção e violência seriam as palavras definitivas. Certamente elas estariam em minha lista, mas acho que a prevalência do carro sobre os indivíduos precisa ser acrescentada ao nosso complexo orgulho de subdesenvolvimento. O valor social que se atribui a um veículo a motor é infinitamente superior a qualquer direito civil neste País movido pelo desrespeito ao pedestre.

 

Em decorrência da impunidade natural que governa o Brasil, o carro ultrapassa todos os limites da legalidade e se impõe sobre os indivíduos para se tornar uma máquina impiedosamente mortífera. Cada um faz o que quer nas ruas da cidade como se a posse do veículo, seja ele um possante carrão importado ou um velho modelo do Século 20, trouxesse salvo conduto para os mais infames procedimentos maloqueiros e antidemocráticos.

 

Definitivamente, a faixa não é do pedestre

 

No carro, as desigualdades sociais do Brasil se anulam nas atitudes autoritárias de avançar o sinal vermelho, ocupar o espaço das calçadas e no ato infame de atirar lixo pela janela. Do alto da pirâmide de renda, o milionário joga lixo à rua por se imaginar no exercício regular de um direito. Afinal, ele paga impostos para que alguém recolha os rejeitos da elite tapioca. O muito pobre pratica o mesmo gesto por entender que a carência quase total de direitos o autoriza a não ter deveres com a sociedade.

 

As barbaridades que se cometem no trânsito das avenidas e rodovias não servem em nada de exemplo para o brasileiro. De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), antes da pandemia os acidentes de transporte terrestre causaram mais de 40 mil mortes, sendo 20% por atropelamentos. Já os óbitos envolvendo motocicletas representam um terço do total. Sem falar dos mais de 300 mil que anualmente sofrem lesões graves. Em custo conservador, é estimado um valor de R$ 50 bilhões por ano em perda de produção e despesas hospitalares.

 

O politicamente correto decidiu fragmentar a violência no Brasil a partir do corte de gênero, raça e opção sexual. Mas não se dá uma palavra sobre a violência brutal dos acidentes de transporte. Há uma hipocrisia bilateral em relação ao tema, pois autor e vítima do crime de trânsito se confundem em uma barafunda regada pela não punição. Um dia eu mato, no outro eu morro e tudo fica por isso mesmo. E os motoqueiros, que aprontam todas, ainda são tratados com a benção do coitadismo.

 

Essa aí é uma viatura do Ministério Público na calçada

 

De muito pouco adiantaram os avanços legislativos do Código de Transito Brasileiro e da chamada Lei Seca. E não resolve depositar a culpa na precariedade das vias de tráfego ou na escassa atuação regulatória do Estado. Para o brasileiro, a cultura da superioridade do veículo a motor em relação ao indivíduo é algo incontestável e de intrínseca normalidade.

 

São praticamente equivalentes os riscos de letalidade de um assalto a mão armada ao de atravessar a faixa de pedestre. O motorista, quando para, se sente ultrajado ao respeitar o transeunte. Comumente lança expressões de baixo calão e faz uso do buzinaço. São raríssimas as cidades brasileiras nas quais a conduta é considerada fator de civilidade e de obediência ao dever legal.

 

Outro dia atravessei pela faixa de pedestre o cruzamento da Avenida 85 com a Rua 94 em Goiânia (GO). No meio da via, o sinal indicava que ainda teria 8 segundos para completar o percurso. Dois motoqueiros avançaram o sinal. Uma madame, em um desses veículos SUV chineses de novo-rico com cara de viatura de funerária, fez o mesmo. Dei pulo grande para me salvar do atropelamento. Ainda assim, ela atingiu o meu braço direito. Não é que a gentil senhora parou para verificar se o automóvel não havia sido machucado?

Marcio Fernandes jornalista

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Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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3 comentários em "A soberania do carro no País da impunidade"

  • Anna Paula Guerra Anna Paula Guerra disse:

    Concordo plenamente com essa crônica , escrita brilhantemente , que mostra uma realidade globalizada nos tempos atuais ,em diversos países , uns menos outros mais, em que o carro tem prioridade absoluta em várias situações do nosso cotidiano !! Não atravesso jamais , sem antes ver que o carro parou!! 👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏

  • Avatar Noemy Faria disse:

    Infelizmente esta é a nossa realidade. Fico muito triste com isso.
    Belo texto, Marcinho. ❤️

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