sexta-feira, 26 de julho de 2024

A sorte foi sua companheira inseparável

 

Marcio Fernandes  –  Em 1979 o Brasil viveu o melhor dos últimos anos do Regime Militar. Anistia instalou atmosfera irreversível de desbunde no País. Havia toda uma produção cultural de vanguarda de esculacho qualificado dos miliares. O rock brasileiro estava de volta com algumas bandas boas. O ambiente nas universidades era de sincero levante revolucionário, embora as atividades fossem mais para simuladas. Tinha o barato da Libelu e dos inúmeros jornais alternativos. Aquele era o momento de se divertir no Brasil para quem havia nascido pouco antes de 1964.

Na contramão da viração brasileira, o jornalista Leandro Tex não via vantagem no cativeiro. Já tinha ideia fixa de viver em Liverpool (Reino Unido). Em 1979, aos 18 anos, com 100 dólares na carteira, foi acabar em Paris. A história começou em 1974, quando casal de ingleses e filha se mudaram para casa ao lado de Tex, no Setor Oeste. O cara era engenheiro encarregado da construção do Frigorífico Anglo em Goiânia. Kathy Mary Turner tocava baixo acústico, enquanto Samantha, aos oito anos, se deliciava com a presença do sol todos os dias.

 

 

Leandro Tex trabalhando na vindima na Alsácia

 

O inglês era fraco, mesmo assim Tex ficou amigo da família. Logo descobriu que Mary havia tocado baixo em banda liderada por John Lennon nos tempos de colegial em Liverpool. Ela tinha o instrumento dedicado pelo ex-Beatle absurdamente assassinado em 1980 em Nova York. Um dia os Turner foram embora, queriam levar Leandro para a Inglaterra, mas ele tinha de ser emancipado e a coisa não rolou. Deixaram para o beatlemaníaco gramática de inglês, cortador de grama que funcionou ainda há pouco e conjunto de tacos de golfe. Esporte que o jornalista praticava nas madrugadas onde hoje se situa a Praça do Sol.

Nelson Motta escreveu biografia chatíssima sobre sua trajetória de sorte no trabalho, na vida e com as mulheres. Sorte teve Tex. Cabeludo, sem falar palavra em francês, o rápido esgotamento daqueles 100 dólares levou Leandro ao limbo dos encantos parisienses. O cara dormiu na rua, passou longe da gastronomia, mas a sorte foi sua companheira inseparável. Sem a menor possibilidade material de sair do perrengue, Leandro foi bater passo pelo Mercado das Pulgas de Paris.

 

 

Ensinado a Bossa Nova para guitarrista de Bob Marley

 

Na loja de um árabe tomou sentimento por violão sem cordas e empoeirado. Sacou os últimos vinte francos, nota moída e ensebada no fundo do bolso. Finalizada a aquisição, Leandro descobriu que havia adquirido autêntica guitarra Tarrega. Preciosidade da indústria instrumental espanhola. Não havia cordas e nem dinheiro para comprar um aspargo. Naquele sábado, no entanto, a sorte estava na proa de Tex. No esmo indecifrável, pegou o metrô e desceu na estação Denfert-Rochereau. Entrou em loja de instrumentos musicais. O dono da empresa logo sacou que ele era brasileiro pelo sotaque do inglês. Ele falou que tinha visitado Bahia, Roraima e, acreditem, Caldas Novas e Anápolis.Tocaram o fino da Bossa Nova pelejando para afinar o violão.

Tex ganhou as cordas, uma capa, e um conselho: vá agora ganhar a vida tocando Jorge Ben na Estação Champs Elysees! Meio de produção pronto, faltava o trabalho. Na estreia, o músico de rua ficou por horas sem o sucesso de um centavo de franco. Até que elegante parisiense, em torno dos 38 anos, meias brancas de ceda, manteve a sorte do cara em dia. Despejou alguma coisa próxima de 80 dólares em moedas na capa do violão. Foi o suficiente para um mês de alimentação no restaurante universitário.

 

 

24 horas de Le Mans

 

Aí vieram festas, mulheres interessantes e providencial encontro com colombiano na fila da bandejão. O cara ia colher uva na Alsácia. A lista do trabalho bem-remunerado estava fechada. Tex vai para a fronteira da França com a Alemanha sem nenhuma possibilidade de ser contratado. De novo, a sorte abre sorriso de vindima. Consegue o trabalho. Deita em uma nota preta. Em seguida, vai com pessoal muito bonito gastar os francos na Oktober Fest em Munique. Ele ainda ganhou grana expressiva em trabalho de entregar panfletos de uma empresa de habitação popular para imigrantes pobres da periferia distante de Paris.

 

 

Enterro de Jean-Paul Sartre em 1980

 

Leandro Tex foi o cara na hora certa, de bem com a sorte, como jornalista e músico. Ensinou a batida diferente da Bossa Nova para o guitarrista do Bob Marley. Entrevistou Jacques Cousteau em francês na ECO-92. Cobriu as 24 Horas de Le Mans. Estudou como ouvinte na Sorbonne. Correu a Europa em longas trajetórias. A grande sorte encontrou Tex na foto mais importante daquele 15 de abril de 1980. Era o enterro de Jean-Paul Sartre. Simone de Beauvior deu piti monumental. Proibiu a Gendarmerie, polícia francesa, de se aproximar do Cemitério de Montparnasse. Sem segurança, a coisa saiu do controle. No dia seguinte, ao chegar à banca de jornal, Leandro Tex estava lá. Sua meia cara saiu na capa do Liberátion ao lado de Geraldine Chaplin, Allain Delon e Charles Aznavour.

 

Marcio Fernandes é jornalista

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Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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